“E, quanto às normas jurídicas, não podendo mais extraí-las da própria ordem que antes se acreditava ler na Natureza, será preciso buscar sua origem exclusivamente nas vontades positivas dos indivíduos: o positivismo jurídico é filho do nominalismo. Todas as características essenciais do pensamento jurídico moderno já estão contidas em potência no nominalismo.” (Michel Villey. A formação do pensamento jurídico moderno. Martins Fontes, 2005, p. 233)
O direito e a justiça estão na ordem do dia! Todos falam sobre justiça, sobre a lei, sobre o direito e suas relações com o mundo real, onde o calo aperta. Há várias hermenêuticas digladiando-se, discussões, dissenções e ninguém se pergunta como é que chegamos até aqui. Como afinal chegamos ao reino do arbítrio?
Foi pensando sobre toda essa loucura que lembrei do livro de Michel Villey, La Formation de la Pensée Juridique Moderne. Essa é uma daquelas obras que assustam devido à espantosa erudição e ao conhecimento profundo que o autor apresenta.
Michel Villey, foi professor de direito em Estrasburgo e na Sorbonne. Foi na Universidade de Paris que ele ministrou, entre os anos de 1961 e 1966, os cursos que depois foram compilados, corrigidos e deram origem a está obra magnífica que em suas mais de 700 páginas nos conduz, pela história do direito, desde antiguidade grega, romana e judaica, passando pela cristandade medieval, até o nascimento da modernidade.
Infelizmente, não dispomos nem de tempo nem de espaço para listar as inúmeras qualidades dessa obra. Sendo assim, vamos direto ao ponto, ou seja, à origem de nossos problemas: o direito moderno.
Ao analisar o impacto do nominalismo de Guilherme de Ockham sobre o pensamento moderno, Michel Villey declara:
“Estou convencido de que poucos estudos são mais necessários para a história da filosofia do que o do nominalismo confrontado com seu oposto, o realismo de São Tomás. A querela dos universais pode, hoje, parecer arcaica, talvez ultrapassada, ou, de preferência, fora de moda – embora seja eterna. Mas perder-se-á menos tempo com ela que com velhas cartas ou velhas coletâneas de costumes, se nosso propósito for apreender o contraste e a transição do direito antigo para o direito moderno. Pois, aí se situa a linha divisória entre o direito natural clássico, inseparável do realismo de Aristóteles e de São Tomás, e o positivismo jurídico. Aí se encontra a chave do problema fundamental (ainda hoje, digam o que disserem) da filosofia do direito.” (Idem, p. 226)
Como mostramos em nosso artigo, O Suicídio da Razão, o nominalismo nega que os universais existam nos indivíduos, ou seja, o universal ‘homem’ não existe nos indivíduos Pedro, Paulo, Rodrigo, pois seria apenas um conceito criado por nosso intelecto para agrupar indivíduos semelhantes que captamos em nossa experiencia sensível. Essa negação, levada às últimas consequências lógicas, nos conduz ao subjetivismo e ao relativismo.
Afinal, se não existe um conhecimento objetivo e verdadeiro da realidade, não pode existir um direito natural, ou seja, um direito que possamos racionalmente constatar a partir da natureza das coisas; o direito e as leis não podem ser senão um produto da vontade de quem tem poder para impô-los aos demais.
“Eis o que, na prática, o direito natural se tornou para Ockham: ele significa as consequências racionais das regras positivas.” (Idem, p. 240)
“No final dessa discussão teórica de Ockham, não vejo subsistir mais nada do direito natural – nada, exceto o a palavra. Mas vejo surgir, no prolongamento do nominalismo ockhamiano, seu corolário: o positivismo jurídico.” (Idem, p. 240)
Esse princípio nominalista, assumido de vários modos pelo pensamento moderno, ao negar um conhecimento objetivo das coisas, nos conduz logicamente a um outro problema: se o direito positivo é subjetivo, independente da variedade e da complexidade das teorias que sustentam essa posição, ele será sempre uma interpretação; e, na prática, uma interpretação que nada mais é que a vontade daqueles que tem o poder de definir e impor.
Essa é a natureza do pensamento jurídico moderno. Portanto, é absolutamente esperado que um juiz da mais alta instância do judiciário diga:
Ao dar essa declaração esse juiz está seguindo a lógica do direito moderno! E se na prática ele ou eles são a última instância jurídica, eles realmente possuem o poder de impor sua interpretação! Ora, como essa interpretação é subjetiva, isto é, não é determinada pela natureza objetiva das coisas, ela é mero exercício da vontade.
A barbárie do arbítrio não é apenas fruto de corrupção moral, mas de uma visão de mundo subjetivista; uma visão de mundo que ao nos privar do conhecimento objetivo da verdade também nos priva da justiça e do direito, na medida que juízes e legisladores não são mais apenas guardiões das leis naturais e positivas, mas são a própria lei.