Defensora Pública fala sobre seu livro recém-lançado pela E.D.A.
Você sabe o que é o Direito Penal do inimigo? E sabe como ele tem se efetivado no Brasil? Descubra com a defensora pública Bianca Cobucci Rosière no volume 8 de janeiro e o Direito Penal do inimigo, recentemente lançado pela E.D.A. Nesta obra, que é resultado de seu trabalho de conclusão de curso em uma pós-graduação em Ciências Penais e Segurança Púbica, Rosière descreve de forma simples e didática diversas ilegalidades e violações dos direitos humanos sofridos pelos prisioneiros do nosso fatídico 08/01/2023.
Na entrevista abaixo, a autora fala, entre outros assuntos sobre suas motivações para escrever seu livro e seu processo de pesquisa para a elaboração da obra, além de expor casos verídicos de inúmeras pessoas que têm sido julgadas segundo uma regra que, em tese, deveria ser exceção…
Revista Esmeril: A E.D.A. lançou recentemente o seu livro 8 de Janeiro e o direito penal do inimigo. O que a motivou a escrevê-lo?
Bianca: A principal motivação foi a injustiça que está sendo cometida pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal contra um determinado grupo que se identifica com o espectro político conservador. Nesse grupo, incluem-se políticos, juristas, jornalistas, empresários e até mesmo o cidadão comum. Por ser defensora pública no Distrito Federal, logo após o dia 8 de janeiro de 2022, participei de um mutirão no estabelecimento prisional feminino, oportunidade em que conversei com as mulheres que foram presas no dia 8, na Praça dos Três Poderes, e no dia 9, no QG do Exército. O relato de todas as mulheres que atendi presas no dia 8 era no sentido de que haviam comparecido ao local para uma manifestação pacífica e não haviam cometido qualquer ato de depredação contra o patrimônio público. Estavam muito abaladas. Da mesma forma, as mulheres que foram presas no dia 9. Informaram que não sabiam que estavam sendo presas e que não foram informadas de seus direitos. Também estive presente no estabelecimento prisional masculino um dia após a morte de Cleriston Pereira da Cunha, conhecido como Clezão, que ocorreu em 20 de novembro de 2023. Nessa ocasião, conversei com os homens que estavam na mesma cela. Portanto, pela profissão que exerço, conheci uma realidade que muitos brasileiros desconhecem. E concluí que deveria levar ao conhecimento dessas pessoas as reiteradas violações de direitos praticadas. Comecei, então, a pesquisar para o trabalho de conclusão de curso de pós-graduação em Ciências Penais e Segurança Pública se haveria ou não a incidência do Direito Penal do inimigo. Esse trabalho cresceu e transformou-se no livro.
Revista Esmeril: Como foi o processo de produção do livro, das pesquisas à escrita, e como ele está estruturado?
Bianca: As pesquisas começaram com a leitura do relatório produzido pela Associação dos Familiares e Vítimas de 8 de janeiro, onde estão registradas inúmeras violações de direitos. Também serviu como fonte de pesquisa o relatório produzido pelo Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, em parceria com a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Distrito Federal. Com base nos fatos que presenciei e nos mencionados relatórios, iniciei a pesquisa bibliográfica pelos livros de autores consagrados que tratam do Direito Penal do inimigo: Eugenio Raúl Zaffaroni, Manuel Cancio Meliá e Günther Jakobs. Em seguida, pesquisei livros de autores que se dedicam aos temas dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, a exemplo do Ministro Gilmar Ferreira Mendes e do Procurador-Geral da República Paulo Gonet.
O livro conta com a apresentação feita pelo Dr. Cleber Neto, Procurador da República e coautor dos livros Inquérito do Fim do Mundo: o apagar das luzes do direito brasileiro, e Sereis como Deuses: o STF e a subversão da justiça, ambos publicados pela E.D.A. Conta, ainda, com o prefácio da Dra. Ludmila Lins Grilo, juíza de direito que é alvo de perseguição política e que foi ilegal e compulsoriamente aposentada, sem proventos, e atualmente está em asilo político nos Estados Unidos. Os capítulos dos livros foram divididos de uma forma objetiva e didática para que a obra possa ser compreendida por todos, inclusive e especialmente os leigos, embora muitas vezes seja inviável fugir de expressões técnicas, jurídicas. Nesse sentido, o primeiro capítulo explica o que são os direitos humanos e os direitos fundamentais, o que os caracterizam e a relação de ambos com a dignidade da pessoa humana. O segundo capítulo explica o que é o Direito Penal do inimigo, quais são os seus fundamentos e características. O terceiro trata dos inquéritos e processos ilegais que tramitam no STF, com destaque para o contexto histórico compreendido entre os anos de 2019 e 2023. O quarto capítulo aborda a supressão dos direitos dos acusados pelos atos do dia 8 de janeiro e o último objetiva demonstrar o perfil autoritário do julgador e os casos da Débora Rodrigues, Clezão, Filipe Martins e Amauri Saad.
Revista Esmeril: Como se define e se verifica em nossa realidade o “Direito Penal do inimigo”?
Bianca: O Direito Penal do inimigo trata-se de um modelo que identifica e discrimina pessoas que serão rotuladas como inimigos, como, por exemplo, os terroristas. Uma vez selecionadas como inimigos pelo Estado, não lhes são assegurados os mesmos direitos dos demais indivíduos. É exatamente o que está acontecendo no Brasil nesse momento.
Posso citar alguns exemplos. Todos aqueles que foram presos em 8 de janeiro permaneceram aproximadamente 24 horas sem alimentação, o que só foi fornecido quando chegaram nos estabelecimentos penais.
No dia 9 de janeiro, por volta das 7 da manhã, as prisões continuaram no acampamento localizado na frente do Quartel-General do Exército em Brasília. Por meio de artifícios enganosos, com o auxílio de um megafone, agentes do Estado simularam uma situação fictícia para animar as pessoas a entrarem nos ônibus, informando que seriam liberadas e encaminhadas à Rodoviária Interestadual de Brasília. Entretanto, foram levadas para Academia Nacional da PF, em Sobradinho-DF, onde foram presas.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) determina que toda pessoa detida deve ser informada das razões da sua detenção e notificada, sem demora, da acusação formulada contra ela. E a Constituição prevê que o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado. Caso não informe o nome de seu advogado, será comunicado à Defensoria Pública.
Quando chegaram aos estabelecimentos prisionais, passaram por privação de alimentação, medicamentos, e visitas de familiares, o que viola a dignidade dos presos e o direito humano à saúde, conforme Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) e CADH.
As violações de direitos continuaram no âmbito judicial e começaram após a prisão, haja vista que o artigo 310 do CPP determina que, em até 24 horas, o juiz deve receber o auto de prisão em flagrante e, em seguida, deve decidir entre relaxar a prisão ilegal; converter a prisão em flagrante em preventiva (se houver pedido da autoridade policial ou do Ministério Público); conceder a liberdade provisória com ou sem fiança; ou decretar outra medida cautelar diversa. Significa que em 24 horas a pessoa estará livre ou presa a outro título, o que não ocorreu.
Além disso, os acusados não tiveram as audiências de custódia realizadas dentro do prazo legal, o que viola a CADH e o Código de Processo Penal. Também houve delegação parcial de competência para realização dessas audiências. O juiz de primeiro grau foi obrigado a apenas formular perguntas, não decidir, mesmo constatando alguma ilegalidade. Apenas o ministro relator, Alexandre de Moraes, decidia. A audiência de custódia é esvaziada e perde efetividade na preservação dos direitos fundamentais. Houve audiências de custódia realizadas sem os autos de prisão em flagrante e sem o número do processo. A Defensoria Pública da União (DPU) registrou as audiências de custódia nas quais o Ministério Público Federal (MPF) manifestou pela concessão de liberdade. Como não existe a possibilidade de manutenção de prisão, de ofício, pelo juiz, nesses casos as pessoas deveriam ter sido soltas, o que não aconteceu.
Há notícia de que os exames de corpo de delito, imprescindíveis para se resguardar a integridade física e moral dos presos, não foram acostados aos autos.
Assim como acontece nos demais inquéritos ilegais do STF, aqueles que se referem aos atos de 8 de janeiro também violam o princípio do juiz natural, pois não há livre distribuição dos inquéritos, com sorteio, e julga pessoas que não fazem jus ao foro por prerrogativa de função. Também violam o sistema acusatório, que prevê a separação dos papéis de vítima, investigador, acusador e julgador.
Além disso, há informações de que a defesa dos acusados, por exemplo, não teve acesso à decisão que determinou, a pedido do ministro Alexandre de Moraes, a designação de audiências de julgamento de recebimentos de denúncias em plenário virtual, que não se confunde com audiência por videoconferência, onde há participação de forma síncrona.
Verifica-se ainda que tanto as denúncias quanto os acórdãos de recebimento de denúncias são genéricos e não analisam as alegações da defesa. Há 98% de identidade, de acordo com a Asfav. Há uma produção em série de julgamentos de pessoas presas à baciada.
Também há uma série de violações nas audiências de instrução, como a concessão do direito de defesa ao réu sem que ele tenha tempo suficiente para prepará-la, isso é o mesmo que não lhe oportunizar o exercício do direito de defesa.
Revista Esmeril: Você acredita que a juristocracia que se instaurou no Brasil possa de alguma forma ser parada, ou, ao menos, refreada? Como isso seria possível?
Bianca: Acredito que sim. A principal medida para refrear o avanço inconstitucional do Supremo Tribunal Federal nas atribuições dos outros poderes, especialmente do Poder Legislativo (no Poder Executivo atualmente parece não haver mais tal interesse), é a atuação do Senado Federal nos termos previstos na Constituição Federal, a fim de encaminhar os pedidos de impeachment de ministros da Suprema Corte.
Não tem choro, atentou contra a democracia? É cana!
“O último a sair, apague a luz do aeroporto.”