ENTREVISTA | Fascismo: o que foi e o que não é

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

João Eigen fala sobre seu Mínimo lançado hoje, e esclarece confusões em torno de um dos termos mais corrompidos de significado desde seu surgimento

Você já foi chamado de fascista alguma vez? Muitos usam esse termo, mas sem a mínima noção do seu significado. Afinal o que “fascismo” quer dizer? Houve apenas uma ideologia fascista?

Um dos importantes lançamentos desta semana é um Mínimo, em que João Eigen se propõe a apresentar de maneira simplificada, didática e esquemática um conjunto de ideias que, unindo sindicalismo, nacionalismo e idealismo filosófico, tentaram dar uma substância ideológica ao movimento fascista italiano, resultando numa síntese: a ideologia fascista. Antes de xingar alguém de fascista, é preciso saber bem o que se está dizendo, e é a origem histórica da ideologia fascista.

Quer saber um pouco mais a respeito das confusões em torno desse termo que foi esvaziado de significado e corrompido, e de sua essência enquanto ideologia? Dê uma conferida na entrevista abaixo, que serve de aperitivo ao excelente livro de João Eigen.


Revista Esmeril: É comum e corriqueiro, há bastante tempo (e em especial atualmente), o uso dos termos “fascismo” e “fascista” para designar tudo e todos que estejam mais à direita no campo político-ideológico. Houve um esvaziamento de significado em relação a esses termos, ou mesmo a corrupção deles? Como isso aconteceu?

João Eigen: As origens dessa deturpação começam quase que pari passu com a ascensão do próprio movimento fascista no começo dos anos 20. Quando, no biennio rosso, os fascistas derrotaram seus rivais socialistas e chegaram ao poder com a Marcha sobre Roma, o recém-fundado Comintern na URSS, a mando de Stálin e Dimitrov, passou a utilizar o adjetivo “fascista” para rotular todo e qualquer grupo ou indivíduo que não apenas se opusesse aos comunistas, mas que até mesmo se mantivesse neutro ou indiferente. Sob essa nova perspectiva, liberais, libertários, conservadores, esquerdistas moderados e até mesmo marxistas social-democratas passaram, magicamente, a ser “fascistas” ou, ocasionalmente, acusados de compactuar com o fascismo.

Na Alemanha, durante os anos eleitorais que marcaram a ascensão de Hitler, os comunistas, seguindo essa diretriz, rotularam seus camaradas marxistas da social-democracia como “social-fascistas” e os igualaram aos próprios nazistas: para os comunistas, não havia diferença substancial entre todos esses “fascistas”. A situação tomou novas proporções com a aliança militar nazi-fascista no Eixo e sua eventual derrocada. A vitoriosa URSS utilizou seu status de hegemon para espalhar sua propaganda comunista, agora com um novo elemento: todos aqueles que, antes da Segunda Guerra, eram tachados de “fascistas”, passaram a ser chamados de “nazifascistas”. O rótulo mudou, mas a intenção da estratégia não.

A nova esquerda, que se espalhou pelas universidades ocidentais a partir dos anos 60, replicou fielmente a reformulada estratégia dos soviéticos e, mesmo após a queda da Cortina de Ferro, o hábito se instaurou como um novo “lugar-comum” da militância esquerdista ocidental. Portanto, quando ouvimos algum esquerdista xingando outra pessoa de “fascista”, “nazista” ou “nazifascista”, estamos ouvindo os ecos de uma estratégia política formulada por homens mortos oriundos de um antigo império genocida.

Revista Esmeril: Fale um pouco sobre seu livro recém-lançado, O mínimo sobre a ideologia fascista.

João Eigen: É exatamente como o nome indica: um resumo sobre os principais aspectos e características da ideologia fascista. E quando digo “fascista”, refiro-me ao fascismo propriamente dito, e não ao nazismo, varguismo, salazarismo, etc., ou seja, ao fascismo italiano do regime de Benito Mussolini.

Embora eu já tenha tratado do tema com profundidade no meu primeiro livro, intitulado O Fascismo como Ideologia e a Revolta Totalitária, decidi escrever este resumo para facilitar a introdução do conteúdo ao público em geral, pois, de fato, meu primeiro livro é bastante extenso e denso. Foi com essa intenção que escrevi este resumo sobre a ideologia fascista, mesmo que já existisse outro “mínimo” sobre o fascismo. A diferença é que este meu Mínimo concentra-se exclusivamente nas características da ideologia fascista italiana, e não no “fascismo genérico” do outro Mínimo.

Revista Esmeril: Sabemos, objetivamente, que o fascismo é algo datado. No entanto, existem ainda hoje influências do fascismo em movimentos sociais e ideológicos, assim como na política? Quais seriam essas influências? Onde podemos encontrá-las?

João Eigen: Não consigo identificar nenhuma característica fascista significativa nos dias atuais. Levando em conta os principais pilares ideológicos do fascismo, como o sindicalismo, o nacionalismo orgânico e o idealismo, não os encontro, na mesma medida em que existiam no fascismo, em nenhum movimento político moderno. Há uma tendência a banalizar o termo, associando-o ao nacionalismo vulgar e a aspectos secundários e consequentes, como o autoritarismo ou a figura de um líder carismático, mas considero essa aplicação equivocada e geradora de mais confusão. Baseio-me na premissa de reduzir ao máximo as confusões semânticas e conceituais, aumentando o rigor na aplicação dos termos; portanto, recuso-me a chamar regimes e ideologias atuais de “fascistas”. Cientistas sociais e analistas políticos deveriam ser mais criativos e cunhar termos mais apropriados para as manifestações ideológicas modernas.

Revista Esmeril: Em seu livro, por exemplo, há dois capítulos interessantes: um sobre o nacionalismo, e outro sobre o sindicalismo, como características ideológicas próprias do fascismo. Aqui, cabem duas perguntas: I) Existe, ou já existiu, sindicalismo que não seja de matriz fascista? II) Como diferenciar o nacionalismo autêntico daquele que, a exemplo do nacionalismo fascista, é meramente instrumento de manipulação ideológica?

João Eigen: Ótima pergunta. Certamente que existiram diversos movimentos sindicalistas que não foram de índole fascista ou protofascista. O sindicalismo fascista surgiu de uma ala do sindicalismo revolucionário italiano, pelo menos desde as últimas décadas do século XIX; sindicalistas, antes mesmo de Mussolini ter saído da infância, já se autointitulavam, e eram popularmente reconhecidos, como os fascistas porque, ao se reapropriarem do símbolo republicano do fascio, utilizaram-no para simbolizar a força da unidade da classe trabalhadora. Mas, claro, deve-se notar: foi apenas uma ala do sindicalismo revolucionário italiano a migrar para o movimento de Mussolini na esteira da Primeira Guerra Mundial.

Sobre o nacionalismo fascista, trata-se de um nacionalismo que alcunhei de “orgânico”, isto é, referente a uma perspectiva que concebe a Nação como um organismo coeso, unitário e autorreferencial, dispensando, portanto, qualquer possibilidade de individualismo. Não é um mero “amor à pátria”, mas uma ideia com implicações ideológicas significativas: o indivíduo, nessa concepção, deve se subordinar às necessidades nacionais comandadas pelo Estado. O nacionalismo atual, na sua vertente mais popular, alinha-se com a defesa dos direitos individuais, diferenciando-se desse nacionalismo orgânico do século passado.

Revista Esmeril: Fale um pouco sobre a “Síntese Fascista”, com que você encerra seu livro.

João Eigen: Minha interpretação da ideologia fascista concentra-se na ideia de que o regime fascista precisou de uma construção ideológica para garantir uma justificativa após a consolidação da ditadura pessoal de Mussolini a partir de 1924. Para simbolizar isso, Mussolini encarregou o filósofo e pedagogo Giovanni Gentile de escrever a entrada “fascismo” na prestigiosa Enciclopédia Italiana em 1929. O resultado foi o famoso opúsculo intitulado A Doutrina do Fascismo. A partir desse momento, as ideias de Gentile passaram a incorporar elementos do nacionalismo de Alfredo Rocco e Enrico Corradini, bem como do sindicalismo nacional de Angelo Olivetti e Sergio Panunzio.

Contudo, este é o aspecto mais importante da ideologia fascista e o que a diferencia de outras ideologias totalitárias: ela falhou em sua missão de formar uma síntese coesa e útil ao regime. De fato, durante os anos 1930, nas tentativas de estruturar o corporativismo, grupos de intelectuais se digladiaram para impor, respectivamente, suas visões do que seria a ideologia fascista. Por exemplo, nacionalistas como Rocco e o sindicalista Panunzio não toleravam o idealismo de Gentile, e brigas faccionais impediram o progresso na construção ideológica até o fim trágico do fascismo na malograda aliança militar nazifascista.

É importante reconhecer e entender essa dinâmica única da ideologia fascista para lidar com mais clareza com o conceito de “fascismo”, sua realidade histórica e as possibilidades de transposição para a atualidade.


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