CULTURA | O cristão, o Empalador e o Vampiro: a história do Vlad por trás do Drácula

Como uma doença, um príncipe heroico e a mídia sensacionalista criaram a mais memorável figura do terror mundial

Quando paramos para analisar qualquer lenda urbana, sobretudo as que perduram por séculos a fio, vamos invariavelmente acabar tropeçando em um emaranhado de verdades, das mais banais às mais surpreendentes, que, assim como todas as substâncias de um bom vinho, vão se combinando e se emaranhando ao longo do tempo de forma cada vez mais fantástica e improvável. Hoje eu convido vocês a explorar alguns fatos verídicos, e depois juntá-los, para então chegar em uma das figuras mais fascinantes do terror mundial.

Confesso-lhes de antemão que este que vos escreve tem uma capacidade exímia – e um tanto inútil – de armazenar informações mais inúteis ainda com uma facilidade que deveria ser utilizada para fins mais, digamos, proveitosos. E advirto-lhes que esta é uma oportunidade única de sentirem o mesmo. Mas fiquem tranquilos que, ao final desta conversa, tudo estará em seu devido lugar.

Pois comecemos transportando-nos para um lugar chamado Valáquia, mais precisamente a Valáquia do século XV. Encontramo-nos em uma região da atual Romênia, um tanto bucólica, mas também um tanto complicada. Esta região, aos pés da segunda maior cadeia de montanhas da Europa, os Cárpatos, é um humilde e pequeno reino, rodeado por três grandes impérios: o Húngaro, ao oeste, praticamente abraçando nossa região inteira; o Sacro Império Romano-Germânico, ao noroeste; e o Otomano, ao sul. E se tem uma coisa que grandes impérios gostam, como é de conhecimento geral, é de guerra. Ah, eu já falei que os Cárpatos têm a maior população europeia de ursos-pardos, lobos e linces? Resumindo: nosso pequeno paraíso campestre está rodeado de guerreiros, e por uma cadeia de montanhas cheia de feras. Adorável!

Aqui façamos uma pausa para esquecermos um pouco da nossa má-fortuna. Mudemos de assunto para… medicina. Existe uma doença genética um tanto comum por estes cantos da Europa, chamada “porfiria”. Simplificando bem o assunto, ela é uma deficiência de uma proteína que faz parte da hemoglobina, substância que dá a cor vermelha ao sangue, e que transporta o oxigênio. Essa deficiência causa uma anemia grave, o que leva a pele a ficar extremamente pálida, como a de um morto-vivo; além disso, a proteína defeituosa é extremamente corrosiva quando em contato com a luz do sol, o que causa lesões de pele e atrofia das gengivas (levando os dentes a parecerem maiores e mais alongados, como os de um cachorro, ou um morcego). Para piorar a situação, a ação dessas substâncias no fígado atrapalha o metabolismo de algumas substâncias presentes no alho, tornando esse alimento literalmente fatal para os portadores da doença.

Nesta nossa época, tudo que não tem uma cura bem definida é adequadamente tratado com sangrias. E como todo bom camponês sabe, após uma sangria, é de bom grado beber um pouco de sangue morno de algum animal recém abatido, para não se perder a vitalidade.

Curiosamente, por ser uma doença genética, ela se perpetua mais em comunidades onde existe casamento consanguíneo (entre parentes) – algo bem comum em lugares onde viajar para encontrar novos parceiros não soa tão interessante, tendo em vista, por exemplo, alguns soldados sedentos por sangue, umas montanhas quase intransponíveis, uns ursos ou lobos…

Voltando à nossa bela Valáquia: ao menos nosso príncipe é um bom cristão, chamado Vlad III, um rapaz um tanto quanto pálido, franzino e de hábitos estranhos. Ele nasceu em outro pequeno reino perto daqui, chamado Transilvânia, para onde seu pai fugira por causa de uma rebelião liderada pelo primo – coisas corriqueiras de política. Nesse meio tempo, para apaziguar os Otomanos, que passavam a se interessar pela nossa região, Vlad pai enviou o filho e seus irmãos como reféns. Ao retornar para casa alguns anos depois, descobriu que os rebeldes haviam assassinado seu pai e seu irmão mais velho. Resolveu essa desavença familiar como qualquer Valaque civilizado faria: convidando-os para um jantar amistoso, e empalando-os enquanto seus filhos assistiam. Não se surpreendam: esse é um método extremamente eficiente de apaziguamento. Tanto que, em nossa capital, existe uma coluna com uma vasilha de ouro capaz de tornar rico qualquer camponês, e que está lá há anos, sem que ninguém a toque. Nada como um bom empalamento para garantir a paz e tranquilidade.

Nosso príncipe, ou voivoda na nossa língua, é chamado popularmente de Vlad Tepes, que quer dizer empalador. Seu pai era um hábil político, tendo sido até convidado pelo imperador Sigismundo, do Sacro Império, a participar da Ordem do Dragão, uma sociedade muito importante que une nossos reis cristãos em juramento de proteger a Cristandade contra os turcos. Por isso ele gostava de ser chamado de Dracul (o Dragão). Seu filho preferia ser chamado Draculea (filho do Dragão) – mais adequado do que empalador, vocês hão de concordar. Mas, ao contrário dos dragões, ele infelizmente não cospe fogo; e dissuadir o maior exército destes dias de passar por aqui, como se não fôssemos lá grande coisa, para chegar até nossos grandes vizinhos e irmãos Cristãos, não é tarefa fácil.

Mas, para quem consegue fazer com que camponeses esfomeados não ousem nem encostar a mão num monte de ouro, sem precisar de um guarda sequer, essa não é uma missão impossível. Não há nada melhor para afugentar um grande exército do que deixar algumas centenas de seus companheiros empalados ao longo do caminho, não é? Bem, o rei deles chama-se Mehmed II, o conquistador de Constantinopla, o rei mais poderoso do mundo; e ele concorda. Inclusive, desistiu de invadir nosso pequeno reino. Pelo menos por enquanto. Dizem que afirmou ser impossível lutar com alguém capaz de cometer tais atrocidades. Quem somos nós para discordar?

Voltemos agora ao presente. Não cabe aqui entrar nos pormenores da biografia do príncipe de quem temos falado até então. De fato, a história de Vlad Tepes, ou Vlad III da Valáquia, é no mínimo curiosa. Mas não podemos nos esquecer do período conturbado em que ele viveu, sendo príncipe de um pequeno reino que era a única coisa entre o poderoso Império Otomano e o restante da Cristandade.

Desde jovem, e sendo herdeiro legítimo de seu reino, teve de lidar, não só com o assassinato do pai e do irmão, mas também com uma rebelião feroz, que contava com o apoio de seus próprios nobres, para então assumir o trono em meio a uma guerra praticamente perdida. Suas táticas de terror – sobretudo por meio do empalamento, método extremamente cruel e prolongado de execução – e sua exímia habilidade bélica eram seu único meio de proteger todo o mundo Cristão contra a maior ameaça que este sofrera até então.

Vlad Draculea foi, de fato, uma personagem ambígua. Considerado até hoje um herói da Cristandade na Romênia, paradoxalmente, a palavra dracul, em romeno moderno, quer dizer “demônio”. Ao mesmo tempo que seu heroísmo e devoção foram perpetuados pelo folclore e pela tradição oral romena, seu caráter sanguinário foi supervalorizado, ainda durante sua vida, pela mídia sensacionalista do Sacro-Império, como um “príncipe empalador que bebia o sangue de seus inimigos”. Os jornalistas modernos que me perdoem, mas de inovadores eles não têm nada.

Acredita-se, entre os historiadores, tanto pelos seus retratos quanto pelos relatos de seu comportamento, que Draculea tenha sido portador de porfiria. Portanto, juntemos as peças: um nobre romeno, que quando jovem habitou a Transilvânia (embora não tenha passado a maior parte de sua vida lá); que tinha uma aparência pálida, quase que de morto-vivo, e dentes alongados tais quais os de um morcego; que teria horror à luz do sol e regularmente tinha de beber sangue, provavelmente após sessões de sangria; que poderia ser morto com um punhado de alho; que tratava os inimigos com extrema crueldade. Agora, podemos “modernizar” seu nome para Dracula.

Um detalhe que deixamos escapar: os traços da porfiria se apresentam na juventude, geralmente por volta dos 16 anos, idade na qual era comum as jovens se casarem. Imaginem, agora, que uma jovem casa-se com um nobre para logo depois se tornar semelhante a ele. Obviamente, ele que causou isso, provavelmente durante as núpcias.

E voilà: em 1897, o escritor irlandês Bram Stoker aproveitou-se desta fascinante lenda do folclore centro-europeu para criar o vampiro mais famoso da história. Uma personagem sedutora, cruel e terrível, mais baseada na realidade do que qualquer um ousaria imaginar, eternizando assim o príncipe que, provavelmente, é a figura mais mal compreendida que a humanidade já ousou conceber.

Mas nem tudo são flores (acho que isso já deu para perceber, não?!): Vlad enfrentou diversas manobras políticas, conspirações, guerras e tentativas de invasão durante seu reinado, até que em 1476, após uma fuga desesperada para a Transilvânia, caiu em batalha contra os turcos, após uma traição de alguns de seus nobres arquitetada por Mehmed II. Foi esquartejado, e sua cabeça ficou exibida numa estaca em Constantinopla durante anos. Mas isso não foi antes de deixar filhos, e sua linhagem provavelmente perdura até os dias atuais.


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