SANTO CONTO | Hoje!

Leônidas Pellegrini
Leônidas Pellegrini
Professor, escritor e revisor.

Conto baseado na conversão de Santo Expedito

Capitão Expedito havia acabado de escutar mais uma vez seu ajudante geral e amigo, Cássio, contar-lhe sobre a vida de Jesus. Ele realmente adorava cada uma de Suas histórias, os milagres, as parábolas, as lições, Sua Morte e Ressurreição, a Ascenção ao Céu, as vidas de Seus Apóstolos, de Sua Mãe, tudo. Encantava-se e desejava de coração se converter, mas…

Despediu-se do rapaz e, antes de voltar à sua tenda, prometeu-lhe que no dia seguinte iria procurá-lo para resolver aquele assunto do batismo, já era hora. Queria mesmo tornar-se um cristão. O espírito, o ânimo de seus subordinados cristãos, que ele protegia com especial cuidado, dava-lhe alento. Queria mesmo ser um deles. Sempre que os via orando, sempre que testemunhava o espírito de caridade naqueles homens, se empolgava, ficava a ponto de chamar Cássio e lhe pedir que arrumasse um padre para ser batizado, mas…

Deixava para depois. Ou melhor, para amanhã: “Amanhã”, ele dizia para si, “Amanhã”. E, no dia seguinte, o amanhã continuava sendo amanhã, e nunca, nunca era o “hoje”, jamais chegava o dia de sua verdadeira e definitiva conversão.

Não que ele fosse preguiçoso. Fora justamente seu espírito ativo que o fizera crescer tão rapidamente em sua carreira militar, galgando postos com facilidade, caindo nas graças do imperador. E as promessas que essa amizade lhe acenava, as facilidades, a vida sossegada e próspera, as riquezas, as possibilidades que se lhe abririam quando ingressasse na política… Ah, um batismo poderia estragar tudo, tudo. E se fosse denunciado? E se o próprio Diocleciano o flagrasse em adoração Àquele que ele sabia ser o único e verdadeiro Deus?

Já havia assistido a martírios, alguns em companhia do próprio imperador, que se alegrava, se divertia em tais ocasiões. Combatente de coragem e vigor, Capitão Expedito não era de recuar no campo de batalha, mas nenhuma carnificina que já presenciara, nem a escaramuça mais sangrenta em que já se metera podia se comparar ao que se fazia com os cristãos. Aquilo lhe dava calafrios, pesadelos. Ia dormir e se via sendo batizado, seu amigo Cássio lá, sorrindo, ele feliz como nunca, e de repente chegavam a guarda real e o imperador em pessoa, desapontado e furioso. E então via Cássio todo feito em pedaços, e ele próprio sendo queimado, mutilado, esticado, esmagado, espetado, coberto de chumbo derretido, obrigado a andar descalço sobre brasas, e, por fim, só depois de muitos e requintados suplícios, decapitado.

Nessas ocasiões o respeitado Capitão se apavorava. Seu espírito se apequenava, e ele deixava para depois, para quando as coisas estivessem mais tranquilas para os cristãos. “Quem sabe Diocleciano não morre amanhã ou depois”, ele pensava, “e um novo imperador mais condescendente, mais tolerante, não torna tudo mais fácil?” Melhor mesmo era esperar. “Amanhã, amanhã…”.

E foi com esse pensamento, com esse “amanhã” conformado que foi dormir aquela noite. Antes de deitar, orou meio sem jeito para Jesus, pedindo que lhe fosse dada coragem, e “quem sabe, quem sabe amanhã…”.

Abriu os olhos com o sol alto na cara. Sua barraca havia sumido, o acampamento todo havia sumido. Estava em um campo de trigo bonito, tranquilo. Levantou, olhou para os lados, era só trigo e mais trigo. Lá adiante havia uma cruz, daquela que se usava para os condenados. Foi até ela. Quando chegou perto, a cruz havia diminuído a ponto de poder ser carregada na mão. Pegou-a e a olhou com carinho. Havia uma inscrição nela: “Hoje”. Então sentiu um fedor desagradável, era enxofre, e de repente um corvo pousou sobre seu ombro esquerdo e grasnou: “Amanhã!” Ele o espantou com a mão, mas a ave voou em volta dele e voltou a pousar em seu ombro, desta vez bicando sua orelha com força e grasnando de novo: “Amanhã! Amanhã! Amanhã!”.

Bateu no corvo com a cruz, o bicho desapareceu. Sentiu o sangue escorrendo de sua orelha bicada, e quando as gotas caíram no chão, a terra começou a tremer e rachar, e um abismo se abriu bem ali ao seu lado, por pouco ele não caiu. Viu o abismo se alargando, o fedor de enxofre ficou insuportável, vomitou. E do abismo emergiu um rio de lava, e de lá saía um fedor pútrido, cadavérico. Caiu de joelhos e vomitou de novo quando viu que daquela lava nojenta emergiam pessoas pedindo por socorro, desesperadas. Vomitou mais uma vez quando viu que uma daquelas pessoas era ele próprio. Só então percebeu que o corvo havia voltado, e voava em volta de si, todo alegre e divertido, grasnando sem parar aquele “Amanhã!” insuportável.  Levantou-se num pulo, agarrou e esganou o bicho, jogou-o no chão, esmagou-o com o pé direito e gritou:

– Amanhã é teu bico rachado, ave do inferno! É hoje! Hoje!

Acordou com Cássio o sacudindo, estava gritando, havia acordado o acampamento inteiro. Seu rosto era um misto de pavor e alegria. Olhou o amigo nos olhos:

– Cássio, aquele padre! Vá buscá-lo! É hoje, meu filho! Hoje!


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