CONTO | Cachimbo

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

À janela, ele abriu cuidadosamente a latinha do Presbyterian Mixture – o perfume do tabaco era inebriante –, preencheu o fornilho do Savinelli até a borda e, com a ferramenta 3 em 1 que mais se assemelhava a um compasso maçônico do que a um acessório para cachimbo, lentamente acomodou o fumo no fornilho. Era dia de folga. Botou para rodar no YouTube a Bachianinha nº 1 de Paulinho Nogueira. E ao observar a fumaça que escapava através da sua janela no 2º andar sorriu, lembrando-se de um amigo protestante também cachimbeiro, um confrade que não gostava do nome do tabaco: “Mistura presbiteriana?! Que nome estranho!”. 

Ele ria alto. Ele, um católico entregue à simbólica satisfação de saborear a fumaça da queima dos hereges… Os presbiterianos, os calvinistas os… Subitamente o vento mudou de direção, e o prazer do papista transformou-se num pedido de socorro: uma lufada de fumaça de cachimbo invadiu a sala do pequeno apartamento. “Cof! Cof! Cof! Droga! Cof! Cof! Cof! Tra… Cof! Cof! Traguei esta droga!”. O homem largou o cachimbo no peitoril da janela e levantou-se arquejando, o fumo penetrara-lhe fundo nos pulmões. A enésima repetição dos acordes de Paulinho Nogueira, no entanto, foram acalmando o cachimbeiro vexado que, restabelecido, tornou à janela onde o cachimbo apagara. 

“O Espírito Santo quer batizar-te, varão! Recebas poder! Recebas autoridade! Sejas cheio do fogo de Pentecostes!”, proclamava, aos brados, uma figura estranha na calçada do outro lado da rua. Era um pastor pentecostal. Trajando social, o religioso passava um sermão ao mendigo sentado no chão que, cismado, não desviava os olhos do espalhafatoso profeta.  

“Deus quer encher-te de poder, vaso! Ele quer levantar-te deste chão, tirar-te deste calabouço, renovar-te as esperanças! Por que jaz nesta podridão, ó desgraçado? Por que te abandonaram os teus, ó infeliz? Assim diz o Senhor para ti: hoje é o dia do teu milagre! É hoje! É hoje! É hoje!”. E enquanto repetia, com notável contundência, o seu “é hoje”, o pastor foi arrebatado por um transe terrível.  

Subitamente, o que era a pronúncia repetida da asseveração de um advérbio, transformou-se em coisa diversa, coisa estranha:  

Têi-kalay-tchôva-lavakatay! Assim diz o Senhor para ti, moribundo: Ladoo-derrécia, akeminência, labashurililicanta nesse mistério! Porque o xamaquente-xalabá não mais será assim. Hoje mudo Eu a tua história! Labaxuricanta-labacéia! Estás vendo? Estás sentindo? Contemple aí, pobre! Sinta o movimento, infeliz!”. 

O mendigo, pobre coitado!, a essa altura já estava apavorado; espremia-se contra a parede. O pastor, enquanto bradava, gesticulava grotescamente, dava saracoteios, volteava a cabeça, batia os pés, girava feito peão. Finalmente o transe do pentecostal chegou ao fim; então, ainda com a voz entrecortada pelos tiques nervosos, ele conclui o seu espetáculo: “Recebestes, varão?”. Era chegado o momento. Estendendo a mão para o pastor, o mendigo responde: “Eu quero! Pelo amor de Deus, seu crente, eu quero receber sim. Estou morrendo de fome!”.  

“O quê? Ora, seu incrédulo! Seu filisteu! Servo de Belzebu! Filho de Belial! Tu não tens fé! Arreda, endemoninhado!”. E ao pronunciar estas palavras, o religioso empinocado foi embora, indignado.  

Na tela da tevê smart estava escrito: “Há alguém aí?”. Paulinho Nogueira há muito emudecera. O homem do 2º andar está agora na cozinha, onde dá as últimas pitadas de tempero na sopa, da qual emana um delicioso aroma de hortaliças. Há também carne. Cuidadosamente, ele corta três generosas fatias de pão italiano e as põe sobre a bandeja, ao lado do prato fumegante. Caminha com o alimento até a porta, mas pára: “Não posso esquecer disto!”. 

Lá está o mendigo, abandonado. Ao perceber que há um homem com uma bandeja caminhando em sua direção, ele sorri, assentindo com a entrega de sua bênção. “Ô, seu moço, muito obrigado! Que Deus lhe pague!”, disse o pobre homem com os olhos marejados de gratidão. “Eu rezei, pedi a Deus do céu que enviasse alguém, uma boa alma para me dar de comer; apareceu um sujeito esquisitão falando uma língua estranha e se tremendo todo, achei que ele fosse matar a minha fome, mas o danado quase me matou de susto. “Uai! Mas o que é isto aqui?! Virgem Maria!, é um cachimbo! Eu sempre quis ter um cachimbo! Obrigado, seu moço!”.  

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