BRUNA TORLAY丨Contra a Vida Intelectual, ou iniciação à cultura

Bruna Torlay
Bruna Torlay
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Ano passado, recebi do escritor Ronald Robson o manuscrito de um livro semiescrito. Um PDF contendo já não me lembro quantas páginas, e que eu demoraria alguns meses para conferir. Contudo, ao acomodar-me para a leitura, não vi o tempo passar. Quando finalmente respondo à mensagem agradecendo-lhe por ter escrito um livro tão necessário, ele me diz que ampliara bastante o então panfleto, convertendo-o num escrito sobre a criatividade.

Há algumas semanas, recebi o livro publicado pela Kírion. Não é mais aquele panfleto necessário e de escrita primorosa que eu recebera ano passado. Mas, como aconteceu à leitura da versão inicial, venci a obra em algumas horas – quantas, não sei, pois passou rápido demais. Acumulo experiências mal resolvidas em torno do assunto desenvolvido pelo autor, razão de meu ávido interesse pelo livro, e aproveito para contar algumas.

Sou professora desde os 20 anos de idade. Comecei revisando os trabalhos de meus colegas acadêmicos na universidade. Não que eu fosse lá grande coisa como redatora. Era passável e os demais, menos articulados. Então eu ajudava. Também havia estudado francês e, a certa altura, calouros de uma turma me pediram para dar aulas dessa língua para um grupo pequeno. Adorava estudar grego e, pouco depois, tive a chance de trabalhar como monitora. Fiz porque me ajudava a estudar a língua. Todas as tarefas em que me meti desde essa idade, cumpri-as por puro gosto, nunca movida por necessidade financeira. Meus pais me sustentaram durante a universidade e o dinheiro que eu ganhava, gastava em livros. Fazia realmente por gosto e diversão. E foi assim, tentando imitar os professores bons que felizmente cruzaram meu caminho, mesclando as técnicas de meus preferidos num amálgama peculiar, que aos poucos aprendi a dar aulas.

Fiz outras coisas ao longo da vida — sobretudo quando a necessidade financeira bateu à porta. Gostei menos. Esse pendor à docência é um misto de prazer em defender a honra de obras maravilhosas que mudaram minha vida, e gratidão sincera às pessoas que me mostraram tão bem o valor do pensamento, do estilo, do belo, da genialidade. Sinto-me diariamente compelida a manter viva a energia da transmissão de alguns tópicos da cultura que realmente me parecem essenciais à vida humana.

A certa altura, o pessoal que se ocupa de marketing digital e lançamento de cursos cruzou meu caminho e resolvi trabalhar em parceria com eles. Não foi de todo mal, pois eu tinha clareza do projeto a realizar, nada além da ampliação do que começara a fazer em 2016: leitura dirigida de obras profundamente relevantes para a compreensão do real gritando ao lado. O início foi ótimo, mas logo se tornou insuportável. A parceria durou menos de um ano e o trato com o discurso dos milhões sobre os quais eu, supostamente, estaria sentada era fatigante para mim, que tenho desde moça a consciência das especificidades da atividade docente no ambiente que é o nosso. Eu comecei a vida como encadernadora. Depois, passei a tradutora. Imaginem vocês se não era deprimente ouvir todos aqueles conselhos psicológicos sobre o quanto “eu merecia ser rica” de quem esperava ganhar dinheiro me transformando em algo parecido com um coach voltado a “dores intelectuais”. A gota d’água foi terem me indicado, como modelo para “ampliar o engajamento no Instagram”, de modo a aumentar as vendas, uma picareta a mais na fila dos vendedores de autoimagens artificiais, forjadas segundo o o padrão produtivo das novelas globais. A justificativa: ela fazia milhões. Com a doçura e o amor à etiqueta que me são característicos, sugeri à boa conselheira que a dona dos milhões os enfiasse naquele lugar. Literalmente. Foi a única reunião realmente produtiva daquela última fase.

A moça sinceramente queria ganhar dinheiro e, em algum momento e não sei por que razão, eu lhe pareci um potencial gancho para ajudá-la neste objetivo. O problema era que eu mesma não estava obcecada em fazer “meu primeiro milhão”, pela simples razão de ter outros planos: continuar a vida que eu começara já nem me lembrava quando, consistente em tentar entender algumas coisas, buscando, inúmeras vezes, o auxílio de quem já havia entendido um pouco o assunto.

Estudo porque sou curiosa. Quando eu era criança, bagunçava a gaveta de meias. Hoje, vivo procurando as peças de um quebra-cabeça infinito que monto dia após dia por pura diversão. Eu não espero absolutamente nada dessa atividade. O fato de gostar de contar o quanto já encontrei para outros curiosos e amantes de quebra-cabeças é a circunstância feliz que conduz-me, com frequência, a alguma sala de aula. Tanto as que invento, como aquelas que gentilmente me convidam a ocupar.

Na época em que me livrei da parceira sonhadora ligada à agência de marketing, o objetivo do grupo era investir em “mentorias intelectuais”. Um misto de desatenção, alienação e burrice me levaram, pouco antes de implorar o cancelamento do contrato, a topar montar um grupo desses. Acabei invertendo a ideia e fazendo um negócio completamente diferente do planejado. Estabeleci número máximo de participantes, ampliei a duração dos encontros, criei uma rotina para que cada um se manifestasse (para conseguir avaliar o resultado de cada percurso) e tinha um caderno com notas sobre cada aluno. Eram ótimos. Os encontros viraram algo parecido às reuniões de orientação para composição de pesquisa, com a diferença relevante que o objeto de investigação em jogo eram aspectos particulares dos próprios envolvidos, os quais, no fundo, só buscavam interlocução sincera para progredir um pouco em assuntos que haviam identificado como essencial às suas vidas.

Era a professora de costume que atuava, mas dessa vez ouvindo as dúvidas existenciais de alunos intrigados consigo durante o intervalo. Algo que faço com muito gosto, diga-se de passagem, pois algumas conversas de corredor são mais frutíferas, para uma ou outra alma curiosa, que cursos inteiros.

Tudo isso para dizer que o livro do Ronald Robson merece ser lido por qualquer pessoa em busca de autenticidade, e que faça o que faça, seja lá o que for no polifacetado universo das atividades intelectuais, porque não poderia fazer outra coisa. Não será uma leitura qualquer, pois trata-se da única interlocução sincera, realmente sincera, corajosamente sincera, de que dispomos no preciso presente. Se debaixo de tantos filtros ainda sobrou alguma coisa de você, colega influenciador e professor digital, o seu coração certamente será tocado.

Breve, Ronald Robson emprestou um frasco de veneno a fim de, furtando-lhe a porção necessária, fazer dele para nós um curativo.

Contra a Vida Intelectual, ou iniciação à cultura
Autor: Ronald Robson
Editora Kìrion, 2024, 212 páginas
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1 COMENTÁRIO

  1. Acompanhei, com muita honra, parte do seu nobre relato. A outra parte é de notória e sequencial conclusão dada a sua transparência total em nos contagiar com seu amor pelo que faz. Portanto, caríssima PROFESSORA, o seu talentoso objetivo está sendo amplamente cumprido e dando excelentes frutos. Graças a Deus!!🙏

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