Nasci no dia 31 de março de 1967, exatamente três anos após o Golpe Civil-Militar de 1964, a minha primeira Ditadura.
Já na adolescência, passei a nutrir uma curiosidade histórica incomum, devorando livros e mais livros sobre o assunto, mas sentia sempre um desconforto com a História oficial, tanto que até hoje não terminei de estudar o assunto, complementando com a História geral e aprender a entender o contexto histórico da época.
Devo confessar que a Ditadura, como é narrada na História, ainda, oficial, não chegava à minha vida no interior de São Paulo, o que chegava, com profusão, através da Televisão, eram os Festivais de Música e os Programas de Humor, chegavam também os jornais, onde víamos todos falando da Ditadura, das perseguições aos terroristas armados que lutavam por Democracia, tudo feito com muita imaginação e burlando a censura do Governo que, ora aqui, ora ali, conseguia barrar alguma coisa.
Claro que houve anos bem duros, durante a vigência do AI-5, mas nenhum desses programas televisivos deixou de serem exibidos ou jornais deixaram de circular, estando o Governo muito ocupado em lidar com a luta armada nas principais Capitais e no interior remoto, ninguém se furtava em criticar o Regime, as músicas eram todas revolucionárias e os Festivais tinham audiências enormes, os programas de humor eram politizados e criativos, ou quem da minha época não se lembra do Bem Amado, de Chico Anysio, Juca Chaves, Jô Soares?
Eram tempos criativos e de muita liberdade, pois o que interessava ao Regime era a luta armada, não a cultura, que foi deixada nas mãos daquela esquerda festiva e bem preparada em driblar a censura, que tinha poucos meios de combater qualquer coisa.
Não estou aqui absolvendo os Militares, de forma nenhuma, esses 20 anos de Regime Militar destruiram com as finanças do País, alijou os conservadores e liberais do debate público e deixou um campo aberto para que tudo o mais que não fosse o Governo cair nas mãos de pessoas que souberam usar a cultura, com maestria, para contar a versão dos “derrotados” da História.
Fim do Regime Militar, eleições em todo o País, eleição indireta para Presidente, formou-se uma aliança entre aqueles que compunham os governos militares e os exilados políticos, e a Nova República começou, uma nova Constituição foi discutida e aprovada sob aplausos dos democratas.
Detalhe, eu fazia Direito à época e os debates no Congresso também eram feitos nos Cursos de Direito, sim, naquela época os bacharéis debatiam fortemente, com muita liberdade e algum respeito entre os debatedores, e essa Constituição “cidadã” era bem criticada, pela esquerda por ser liberal demais, pelos liberais por ser socialista demais, e por Juristas honestos por ser uma colcha de retalhos de direitos sem fim, a serem bancados pelo Estado e poucas obrigações que pudessem manter esses direitos infindáveis.
Enfim, era uma Constituição ruim que não tinha como funcionar, e não funcionou, afinal foram dezenas de Emendas, o Frankenstein foi ficando mais feio e chegamos até o ano de 2018, com dois impeachments de Presidentes e os Poderes da Republica totalmente desequilibrados, com o velho acordo entre Socialdemocratas e Esquerda ruindo porque a pessoas não acreditavam que algum deles preocupava-se o mínimo com o Brasil e seus pagadores de impostos.
O fenômeno Bolsonaro pegou todos de surpresa, ninguém entendia como um Deputado de baixo-clero conseguiu ter a estrondosa votação que teve, a mídia, que antes conseguia disfarçar sua total complacência com a Esquerda, por haver duas esquerdas se revezando no Poder, arrancou a máscara e passou quatro anos batendo em um Governo que era bom em alguns aspectos, ruim em outros e mais do mesmo em alguns, mas tinha um viés de liberdade de expressão e econômica.
Com a mídia pronta para a luta, o Sistema se uniu de novo, como em 1985, socialdemocratas e radicais voltaram a se entender e começou o rompimento de tudo que foi criado lá atrás, a Constituição cidadã não atendia mais as pretensões dos velhos Donos do Poder, e foi sacada da cartola a antiga Corte Constitucional, que passou a usar os movimentos já presentes nas Instâncias inferiores, e que antes eram barrados nos Tribunais Superiores.
O que antes era fruto das cabeças de alguns Juízes e Promotores com síndrome de deuses da racionalidade, que ignoravam os políticos eleitos e as Leis aprovadas, para fazerem valer sua nova visão Constitucional de que políticos e povo não sabiam o que era melhor para eles passou, pouco a pouco, e cada vez mais, a ser aceito nos Tribunais Superiores e mais, passou a contar com cada vez mais Poder.
Assim, já durante o mandato do ex-Presidente, a Justiça tomou a Poder para si, já não eram Câmaras Municipais ou Legislativos Estaduais, Prefeitos ou Governadores, a serem atropelados, primeiro caiu o Executivo Federal, logo em seguida veio o Congresso todo, Presidente, Ministros, Deputados e Senadores, todos estavam passíveis de serem desautorizados e censurados, em caso de recusa, processados, calados e presos.
Com a eleição de 2022 totalmente dominada, o antigo excluído voltou ao Poder (com quase nenhum poder), o Congresso se renovou (também sem nenhum poder) e o órgão máximo do Judiciário passou a ditar regras gerais, desde comportamentos em redes sociais até Orçamento da União.
Pronto, estou em um novo Regime autoritário, mas não com aquela leveza de antes, com criticas e risadas sobre os governantes, artistas populares com piadas e musicais revolucionários, tudo isso foi calado com muita verba pública, cancelamento ou cadeia. Simples assim.
E aquela Constituição cidadã, tanto criticada, já estropiada e maltratada, foi colocada apenas como um item de decoração, os estudos de Direito foram esquecidos e ninguém consegue enxergar como são as novas regras, muitos calaram por medo ou conveniência, outros tantos foram calados na marra, o povo é apenas ignorado solenemente até pela antiga imprensa, que lutava contra a censura tosca dos “anos de chumbo” e hoje clama por uma censura poderosa, com todos os meios de ação para realmente calar e perseguir todo mundo.
A nova República, sonhada como um novo tempo, ficou velha e carcomida muito rápido, em cinco anos chegamos a um ponto que vinte anos de militarismo nunca sonhou alcançar, o Brasil como eu e muitos outros conheciam acabou, o Direito não é mais Direito, a mídia e o entretenimento não tem mais humor e nem criatividade, o povo, sobrecarregado de impostos e sem nenhum direito, definha.
A Ditadura de hoje é a realização do sonho de qualquer Ditador do Século XX, é aquela que tudo vê, tudo controla e contra a qual poucos se dispõe a lutar, parecendo homenagear o patrono do Direito no Brasil, Rui Barbosa, que dizia “A pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela não há a quem recorrer”. Profético.
gostei muito bom
Achei muito bom o texto.
Otimo texto
excelente matéria, ansiosa para os próximos capítulos!!!