VITOR MARCOLIN | Dissimulação

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Psicólogo charlatão

Suzana tinha acabado de fazer anos quando assinou o contrato do curso online de psicologia, ela estava felicíssima. Na festa em comemoração ao seu 19º aniversário, a moça só fazia mostrar seu entusiasmo com o curso — caríssimo, mas custeado por sua madrinha. “Gostou do presente, minha filha?”, perguntou, orgulhosa, a madrinha. “Deus do céu, madrinha!, eu amei!”, respondeu Suzana, fazendo questão de que todos na festa soubessem que não se tratava de um curso qualquer, mas de uma profissionalização autêntica chancelada por um grandão da psicologia no Brasil. “É um professor da capital, minha gente! Um católico!”. Suzana fazia jus à alcunha criada por um seu tio: “menina-beata”. Honrando com uma quase devoção o seu apelido, ela era, na aparência, irretocável modelo de santidade.  

Duas semanas depois de iniciado o curso, ela ficou noiva de um colega de sala virtual, um rapaz de São Paulo que atendia pelo nome de Lucas, dois anos mais velho que Suzana. Ambos haviam se encontrado duas ou três vezes antes de firmarem compromisso. Com efeito, ninguém achou estranho o acontecimento, nem os rapazes interessados na moça — embora tivessem inveja de Lucas. O casal comprometido, quando interpelado sobre o noivado, respondia simplesmente que se amavam e que queriam fazer cumprir a “vontade de Deus”; desejavam, antes de tudo, abrirem-se à vida. Sem dúvida, Suzana demonstrava maior entusiasmo com a situação — era da sua personalidade. Familiares ou amigos próximos ainda não suspeitavam, mas o principal responsável pela incipiente união dos colegas havia sido o professor de psicologia.  

Aos olhos inexperientes de Lucas e Suzana, ninguém falava melhor que o professor; ninguém entendia com maior perícia os meandros da personalidade humana. Ninguém. Se a alma do homem fosse uma cebola, aquele psicólogo poderia cindir as camadas da leguminosa com destreza exemplar — e quem chorava eram as testemunhas. Nas aulas, o casal aprendeu que tinha um dever a cumprir: povoar a terra com filhos crentes na verdade, filhos que amassem a beleza e que fossem praticantes devotos da bondade. Com olhos rútilos colados ao ecrã do notebook, Suzana sonhava com a materialização desta concepção ideal da vida. O professor encantava a moça. Num dos módulos do curso, o casal passou a aprender sobre o valor fundamental do trabalho — era um módulo exclusivo aos alunos do sexo masculino, mas Suzana, depois de não pouca súplica, conseguiu do professor autorização para assistir às aulas exclusivas. E não foi pouca a perturbação sua quando descobriu que outras alunas também conseguiram passe livre para as preleções restritas.  

Com postura e fala que afetavam confiança, autodomínio, virilidade, o psicólogo explicava o porquê elementar do homem ter de comer o pão untado “no suor do teu rosto”. Aos rapazes presentes à aula online era ensinado que o homem deveria cumprir o seu dever, a todo custo; era-lhes esclarecido o valor do sacrifício, o senso moral para com Deus, com a pátria e com a família. O entusiasmo de Lucas só não era maior do que o de sua noiva, que considerava o grande psicólogo um oráculo mediador entre Deus e os homens — de bem. Certo dia, quando Lucas chegou de surpresa para uma visita inesperada, obteve autorização da mãe da moça para entrar no quarto de sua amada sem cerimônia: 

— “O que é isso?! O que você está fazendo, Suzana?”. 

Com o susto, ela deixou o celular cair sobre o carpete do assoalho.

— “Lucas! Por que não bateu antes de entrar?!”. 

— “Sua mãe permitiu. Agora me responda o que é isso tudo?”. 

— “Não tá vendo? São fotos que pedi à prima Júlia que imprimisse. Gostou?”. 

— “Como assim? Você enlouqueceu? A cara do professor está por toda parte!”. 

Lucas tinha certa noção de que, assim como ele, Suzana nutria grande admiração pelo psicólogo. Mas jamais imaginaria que fosse para tanto. A única foto do casal era um papel fotográfico miúdo que havia sido impresso numa cabine automática do shopping da cidade; e ainda assim meio amarrotada, porque o porta-retrato original agora emoldurava uma das inumeráveis imagens do professor.  

— “Você tem de parar com isso, Suzana!”.  

— “Deixa de ser bobo! Parar com o quê? Eu sei que você também ama nosso professor. Lucas, graças a ele estamos juntos, graças a ele nós vamos nos casar”.  

— “Eu gosto dele, mas isso não é normal, Suzana. Você age como se ele fosse a pessoa mais importante da sua vida. Mais importante do que eu!”.  

— “Bobinho. Venha cá. Anda, sente-se aqui”.  

Ambos ficaram abraçados durante um longo tempo sem dizer palavra. Até que, alarmada pelo silêncio persistente, a mãe da moça pôs a cabeça para dentro do quarto, armada com a desculpa de que era hora do café. Aparentemente, tudo havia sido resolvido; Lucas parou de se incomodar com a devoção de sua noiva pelo grande guia do casal. Pelo contrário: até gostava, achava honroso da parte dela a admiração verdadeira para com o intelectual. A fim de comemorar a nota máxima que Suzana conquistara nos exames finais do curso, o próprio Lucas trouxe para ela um retrato personalizado do professor: era uma montagem na qual os rostos dos três surgiam no centro de um coração. Suzana ficou emocionada com o mimo; depois de abraçar Lucas, enxugou, com um movimento rápido, uma lágrima furtiva.  

— “O que foi? Não gostou?”. 

— “Adorei, meu bem”.  

— “Não parece. Eu conheço você, Suzana, o que foi?”. 

— “Nada. Estou bem. Obrigada pelo presente”.  

Dois meses depois do fim do curso, casaram-se na paróquia da cidade do interior. Contrariando a mãe de Suzana, decidiram passar a lua-de-mel na capital, onde, como parte das comemorações do casamento, encontrar-se-iam com o psicólogo responsável por aquela união. Suzana insistiu para ver o professor antes da primeira noite com Lucas que, já habituado à extrema admiração da mulher para com o mestre, assentiu. Chamaram o motorista do aplicativo que os levaria até o hotel no qual o intelectual estava hospedado. Ao chegarem, Suzana fez um pedido estranho a Lucas:  

— “Meu bem, quero que você fique aqui embaixo. Quero ver o professor primeiro”.  

— “Como assim? Suzana, agora somos um casal, temos a bênção do Matrimônio. Vamos, juntos, agradecer pessoalmente a ele por tudo o que fez por nós. Juntos, Suzana!”.  

— “Lucas, não!”.  

E este “não!” reverberou pelo hall do hotel, chamando a atenção daqueles que estavam entediados na fila da recepção.  

— “O que há com você, Suzana? Quer saber, não vou brigar. Hoje não. É nossa lua-de-mel. Pode ir. Eu subo depois”.  

— “Obrigada, meu amor! Fica de olho no celular, que eu vou enviar uma mensagem p’ra você subir”.  

A mulher deu um beijo débil no rosto do marido e desapareceu no interior do elevador. Durante os primeiros 30 minutos, Lucas permaneceu sentado. Via-se nele um semblante de objeção, poder-se-ia dizer que era de protesto. Ao cabo de 45 minutos, como se Suzana não enviasse mensagem alguma, concluiu que ela já tivera bastante tempo para cumprimentar o professor, agradecendo-o por todo o ensinamento recebido. Assim, Lucas levanta-se, vai até a recepção do hotel, dá e recebe informações de praxe e, assim como sua mulher fizera há quase uma hora, também desaparece no interior do elevador. No andar programado, sai, meneia a cabeça para ambos os lados do corredor, orienta-se, segue à direita, chega até a porta que exibe o número previamente indicado. Ia bater, mas se deteve porque ouviu sons estranhos advindos do interior do quarto. Não teve dúvida, porque o que ouvia era claro: gemidos de mulher.  

Lucas sente acelerar o compasso do coração, as têmporas a latejarem. Na garganta, um nó. É a voz de Suzana que exprime — sem dúvida — a satisfação do ato coito. Ele estacou, ouvindo. Os gemidos da mulher eram entrecortados pelo ligeiro som de tapas, seguidos por gritos femininos que terminavam abruptamente, como se fossem abafados à força. De súbito, um pensamento iluminou Lucas: “E se ela estiver a ser violentada?!”. Improvável. Porque ele ouviu, baixo mas claramente, a voz feminina dizer: “Assim, meu bem, continua. Assim, assim, ass… Ai!”. Era a voz de Suzana — sem dúvida. O medo e a tristeza do marido traído converteram-se em ódio. Ia entrar. Ia pôr a porta abaixo aos murros. Desejou ter uma arma. Não tinha. O que ele tinha?: “nada do que ela quer”, pensou. De volta ao hall teve gana de dizer algumas verdades via mensagem de texto, apanhou o celular… “que covardia, meu Deus”. E chamou o carro do aplicativo.  

***


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