VITOR MARCOLIN | Politicamente correcto

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Repelente antinatural

No início dos anos 2000 eu estava no Ensino Fundamental da rede pública estadual paulista. As mudanças aconteceram rápido demais: celular, internet, redes sociais, novos meios para ludibriar os professores… Um pouco mais tarde, já no Ginásio, lembro-me da figura de um professor de História que, com o máximo de esforço, tentava fazer-nos encarar a dinâmica do mundo com um pouco mais de realismo. Para isto, claro, empregava os chavões já consagrados – e não necessariamente equivocados – da linguagem marxista. No Ensino Médio a coisa tomou proporções tragicômicas: frequentemente as aulas de Sociologia e História — não as de Filosofia, pois tive a sorte de ter tido um professor desencanado – transformavam-se em inflamadas preleções com a finalidade de supostamente despertar o senso subversivo nos adolescentes. Tudo em vão. Ninguém se importava.  

A verdade é que achávamos as inumeráveis tentativas do professor de nos fazer conscientes da importância de uma vida ética & cidadã assaz enfadonhas. Às vezes, no entanto, era engraçado. O coitado era caricato: frequentemente de dedo em riste, punha-se a enumerar os benefícios de uma vida politicamente ativa já desde a juventude; discorria sobre a necessidade inadiável da reivindicação dos nossos direitos; alertava-nos sobre os perigos da passividade… Bastava o transcurso de poucos minutos da aula, e o homem que nos queria impingir o espírito cidadão já não tinha mais forças para continuar. Sua voz embargava e, por trás das grossas lentes dos óculos, podíamos perceber o melancólico aumento do seu lacrimejamento. O professor era miudinho, e não era difícil imaginar que o seu desejo era abandonar às pressas a sala de aula a fim de ir chorar em algum canto obscuro dos corredores.  

Dizer que ninguém se importava com os discursos de engajamento dos professores de Ciências Humanas no Ensino Médio é um franco exagero: havia alguns. Poucos, é verdade; os poucos aplicados nas aulas. Mas não durava. O espírito de irreverência era forte o bastante para sepultar os interessados nas ideias políticas dos professores numa atmosfera de burla e galhofa. Era pura gozação. Se o mestre dizia para sermos éticos, tomávamos o rumo contrário e descíamos a mais pura falta de ética em qualquer um sob o nosso alcance; se ele mandava-nos “maneirar” nos gracejos supostamente desrespeitosos, tomávamos maior gosto nas brincadeiras de mangação; se dizia que este ou aquele termo não deveria ser usado por causa de seu potencial malcriado, era aí que a palavra ganhava status de mágica no âmbito da linguagem coletiva da classe. Aquilo era um circo.  

Mas a realidade da burla escolar começou a ganhar contornos sombrios quando o professor passou a ter ao seu dispor um estranhíssimo poder de coerção. Ao menor sinal audível de termos categorizados — à revelia do bom-senso – como “politicamente incorretos”, o mestre, agora desprovido do seu habitual ar cômico, ordenava uma retratação. Caso o réu desobedecesse à ordem de desagravo, o docente, auxiliado pelos membros da diretoria, redigia uma advertência aos pais ou responsáveis do delinquente na qual ia, entre aspas, o termo gravíssimo que saíra da boca do aluno. Assim a atmosfera lúdica e espontânea da sala de aula foi dissipada, e o ambiente, que já era artificial, tornou-se ainda mais repelente da criatividade. Dizem que na Universidade a coisa não é mais branda, lá todos são exemplares cidadãos.  

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