Depois de um dia de labuta, já em casa, ouço um estrondo: era um dos grossos volumes da enciclopédia de literatura que caíra. Ainda sonolento, apanho o livro com cuidado — é um exemplar raro — e, mecanicamente, abro-o numa página qualquer. O autor explicava Camões. “Por meio de exemplos, apresenta-se a inconstância como a essência da vida humana”. No centro da página amarelada, jazia o soneto:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
*
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem — se algum houve —, as saudades.
*
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e enfim converte em choro o doce canto.
*
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto:
que não se muda já como soía.
***
À guisa de explicação, dizia o explicador: “Assim, afirma-se a permanente instabilidade do mundo exterior e interior: ‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades‘. A partir daí, chega-se a uma generalização de tom filosófico: ‘todo o mundo é composto de mudança‘. O tom desiludido deste soneto vem do fato de que as mudanças — que poderiam anunciar melhores tempos — para o eu lírico associam-se a um entristecimento, pois convertem o canto em choro. Esta constatação amarga é reforçada, no último terceto, pela instabilidade do próprio ritmo — imprevisível — das transformações”. Assenti.
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