VITOR MARCOLIN | Justiça kafkiana

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

A sentença de Pierre

Apesar do nome francês, Pierre era brasileiro. Ele trabalhava como professor de História na rede pública estadual paulista, e vivia com a mulher e duas filhas no município de Santo Antônio do Pinhal, no sopé da Serra da Mantiqueira. O homem levava uma vida pacata e, sob muitos aspectos, feliz: mantinha com a esposa exemplar relação conjugal, de fazer inveja aos paroquianos pinhalenses; esforçava-se para dar às filhas tudo o que elas precisavam, e boa parte do que as pequenas pediam; e cumpria com o seu dever de professor com a diligência de um vocacionado. A vida de Pierre, no entanto, estava à beira de uma mudança radical.

A família estava sentada à mesa, todos compenetrados na breve oração. Para Pierre, a maior alegria da vida era poder observar a expressão de afeto nos rostos daqueles que se sentavam com ele. Sobre a mesa, dentre os pratos servidos fartamente, o preferido do professor: bundinha de tanajura frita na banha de porco, comida típica do Vale do Paraíba e da Serra da Mantiqueira. Findo o jantar, quando as filhas retiravam-se para o quarto, e a mulher de Pierre passava a ocupar-se com a lareira — era agosto, o mês mais frio na Mantiqueira —, o professor esparramava-se na poltrona da sala. Talvez lesse mais um capítulo do livro começado na semana passada, um título de Aldous Huxley. Mas não.

Subitamente, Pierre ouviu batidas à porta. E não eram batidas amigáveis. Não. Alguém claramente esmurrava a madeira da porta. Ao ouvir o barulho, as filhas do professor saíram do quarto e, abraçadas à mãe — que mantinha o atiçador da lareira firmemente na mão direita — fitavam Pierre, como a indagá-lo se ele teria coragem de atender. E ele teve. Engoliu seco, mordeu a mandíbula e, numa reação instintiva a fim de livrar-se da humilhante sensação de ter o coração pulsando na goela, caminhou firmemente até a porta da casa. Abriu-a. Mas não para o seu alívio.

Um homem alto, de óculos e roupas escuras apontou um distintivo para o nariz de Pierre: “Polícia Geral. Agente”. O oficial não estava sozinho, trazia consigo um pequeno batalhão que, ato contínuo, obrigaram o dono da casa a dar alguns passos para trás e entraram na residência. A voz cavernosa do agente iniciou o diálogo:

— O senhor é Pierre Ferreira Moreau Magalhães?

— Sim.

— Pois o senhor está preso!

— O quê?!

— Isso mesmo, o senhor está preso.

— Mas sob qual acusação?

— Não há acusação. Nós vamos levá-lo para o presídio de segurança máxima de Itapirá, em Goiás. Pode se despedir de sua família.

O mal-estar que já dominava Pierre agora começou a afetar os seus intestinos. Porém, suficientemente consciente para se constranger, o professor sentou-se no sofá, como se convidando os oficiais a um esclarecimento. A elucidação, no entanto, não veio: algemado, ele foi posto à força no interior do camburão. A esposa e as filhas do professor ficaram chorando na sala, depois de testemunharem a condução coercitiva do pai.

Na jurisdição de Itapirá, o condenado foi submetido a um julgamento bastante célere. O juiz, excelentíssimo de Anãmiri, no Mato Grosso do Sul, atuava sem impedimento no município goiano. Tudo aconteceu rápido demais: o autor do processo contra o professor de Santo Antônio do Pinhal era o próprio juiz que, naturalmente, acatou a petição inicial que ele mesmo formulara. O caráter unívoco do processo, no entanto, reduziu a burocracia. Isso porque a qualificação dos envolvidos, a narração dos fatos, a invocação das leis e teorias jurídicas aplicáveis aos fatos, e o pedido do autor foram suprimidos pela palavra do juiz.

Naturalmente, a contestação de Pierre não foi acatada, e o processo pulou para a declaração da sentença — uma mera ratificação do que o oficial da Polícia Geral (PG) já havia dito à entrada da casa do professor. A fase recursal não foi sequer mencionada pelo excelentíssimo juiz.

Na prisão de segurança máxima de Itapirá, Pierre cumpre sua sentença de 25 anos de trabalhos forçados. O complexo penitenciário é conhecido pela fabricação de porcas e parafusos para a indústria paulista. E as peças são feitas com esmero.

***


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2 COMENTÁRIOS

  1. É a realidade do espírito totalitário que atinge a humanidade e que fora observado no passado por Franz Kafka. Belo conto senhor Vitor, parabéns.

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