Baseado em Gênesis 4
Caim tratava o solo com raiva e batia com tanta força no chão que fazia espalhar terra e poeira para todo lado. Estava desconcentrado e o trabalho não rendia. Acabou jogando longe a ferramenta e abandonou a plantação enquanto entredentes amaldiçoava Deus e sua vida. Seu Anjo olhava apreensivo, tentava se comunicar com ele, mas o camponês não permitia, em seu coração e entre os seus pensamentos só havia lugar para o ressentimento.
Dias antes, quando ele apresentara seus dons para Deus, o Pai não se agradara tanto assim daquelas ofertas. E, para piorar, os animais que seu irmão Lhe oferecera haviam-no contentado muito. Caim sabia que a culpa na verdade era sua: ele oferecera aqueles produtos de má vontade, e havia guardado a melhor parte para si. O que oferecera ao Pai não era o pior de sua colheita, longe disso, mas também não era o que havia de melhor. Mas ele se recusava a admitir suas faltas, ainda mais depois da reprimenda que levou de Deus. No lugar disso, preferiu a revolta silenciosa. E teve ódio do Pai e do irmão.
Ia andando pelo campo, lembrando dos belos animais do irmão, e pensou que se fosse ele o pastor, tudo seria diferente, e seria ele o favorito do Pai. Remoía aqueles sentimentos sem parar, e seu ódio só crescia. Quando se deu conta, estava de frente para o rebanho de Abel, que, lá do meio das ovelhas, sorriu acenou para ele. Caim forçou um sorriso e acenou de volta, chamando o irmão:
– O dia está bonito, vamos dar uma volta no campo!
– Irmão – Abel limpava o suor da testa enquanto se aproximava – há trabalho a ser feito! Os animais…
– Vão continuar aí! Não sejas tão rigoroso, Abel, vamos aproveitar um pouco este sol, é rapidinho! Vamos…
O pastor olhou com pena para o irmão preguiçoso. Não conseguiu dizer não. E talvez fosse bom passar mais um tempo em companhia dele. Os dois andavam distantes, quem sabe não seria uma boa oportunidade para se reaproximarem? Abraçou Caim e foi com ele.
Foram conversando sobre as amenidades mais diversas, lembranças da infância, casos que não se cansavam de relembrar, as tantas brigas que tiveram por Caim sempre querer destruir alguma brincadeira do irmão caçula. Iam rindo de uma dessas rezingas quando pararam para admirar a paisagem: o sol já começava a se por, e no contorno de umas montanhas ao longe já se desenhavam uns arcos meio dourados, meio laranja. Era bonito, assim como o canto dos pássaros voltando para as árvores antes da noite.
Abel ia dizer ao irmão que já era hora de voltarem quando sentiu uma pancada na cabeça e caiu de joelhos. Caim acabara de lhe acertar com um cajado. O pastor olhou com para o irmão com os olhos arregalados e não conseguiu falar nada. Recebeu outra paulada. E outra. Então caiu de com o rosto no chão. Virando o pescoço, olhou para o céu uma última vez e conversou em silêncio com o Pai, pedindo perdão para o irmão, e desfaleceu. Caim jogou longe o cajado e saiu correndo, sem olhar para trás. Quando parou, acabou adormecendo.
Acordou com o balido das ovelhas de Abel, que se dispersavam pelo campo. Olhou para o seu corpo, viu o sangue seco do irmão que se lhe espirrara e tremeu. Então, escutou a voz do Pai, grave:
– Caim, onde está teu irmão Abel?
– Não sei – ele respondeu cabisbaixo – Acaso sou guarda de meu irmão?
E o coração de Deus, que já vinha arrasado com o que acontecera no dia anterior, doeu mais ainda, e Sua voz se fez ouvir furiosa:
– Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão ergue seu clamor da terra até mim!
– Eu…
– Mataste teu irmão! Por isso, serás maldito nesta terra! Quando a cultivares, ela não te dará os seus frutos! Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra!
Caim estremeceu mais ainda, e caiu prostrado diante de Deus. Chorando, disse:
– Pai, perdão! Perdão, mesmo que eu não mereça! Este castigo é pesado demais! Morrerei vagando nesta terra!
Então Deus olhou para o coração confuso de Seu filho e se apiedou dele. Mais brando, respondeu-lhe:
– Não será assim, mas qualquer um que matar Caim, será castigado sete vezes mais. Agora, levarás um sinal contigo, e este sinal impedirá que quem te encontre, te mate. Toma.
Naquela hora, enquanto Deus abençoava mais um mau filho e novamente sentia Seu coração dilacerado, Caim rumava para o Leste, ainda chorando, humilhado, arrependido e amargurado consigo mesmo. Em seu peito, sentia uma dor inominável, que lhe parecia muito maior do que ele podia aguentar. Uma tristeza que o acompanharia durante todos os dias enquanto ele vivesse.