REFLEXÕES | III – O sonho de Hegel – Parte 2 

Ronaldo Mota
Ronaldo Mota
Neste espaço discutiremos diversos temas de filosofia, antropologia e cultura de modo crítico e ácido, sempre fugindo do lugar comum e das explicações simplórias. É uma coluna dedicada a quem tem fome e sede de verdade; a quem não confunde assertividade com soberba; a quem é constantemente fustigado pelo chicote espiritual do amor à Sabedoria, que impele sempre para a origem e para os fundamentos das coisas.

Em nossa última reflexão, O sonho de Hegel – Parte 1, mostramos que, tanto na Fenomenologia do Espírito quanto na Ciência da Lógica, Hegel assume uma certa noção de ser que contradiz aquilo que naturalmente as pessoas entendem como ser.  

O ser humano, naturalmente, crê que ser é aquilo que é; as pessoas, independentemente do nível de instrução, veem as coisas do mundo e o próprio mundo como seres; assim, um cavalo é um ser, um pedaço de pão é um ser, um homem é um ser, nosso planeta é um ser, o sol é um ser e assim por diante. Disso decorre, inevitavelmente, que um ser, qualquer que seja, não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Por exemplo: este cachorro que está agora diante de mim não poder ser um cachorro e ao mesmo tempo não ser um cachorro! Ou é cachorro ou não é. Essa constatação natural e evidente leva o nome de princípio de não contradição. Esse princípio é um dos primeiros princípios da razão humana, ou seja, a razão humana procede em seu modo de agir específico com base nesse princípio que o intelecto humano verifica e retira dos seres que o rodeiam.  

Como vimos, a noção de ser de Hegel se opõe a essa noção de ser natural do homem porque para Hegel o ser é e não é, a realidade é autocontraditória. Ora, essa noção de ser é um dos principais motivos pelos quais a leitura dos textos de Hegel é tão difícil, já que, negando essa noção evidente de ser e os princípios dela decorrentes, Hegel precisou criar uma nova linguagem, com novos termos polissêmicos, criando sentidos novos para termos antigos, elaborando toda uma nova forma de expressão fundamentada na dialética do ser. 

Sobre essa base Hegel constrói seu sistema e nele desenvolve o conceito de Geist (Espírito), noção absolutamente fundamental em sua cosmovisão.  

Para Hegel, o Geist é o espírito cósmico, a origem (não temporal) do mundo material que nada mais é que uma emanação sua. Segundo Hegel, por uma necessidade de sua própria natureza, esse Geist, na condição de consciência, para ter consciência de si necessitou negar-se, colocando-se como outro, distinto de si, gerando assim, por emanação, o universo; assim o Geist gera a substância que, enquanto material, é seu oposto, contudo, ao mesmo tempo é por onde esse Geist evolui pela história natural até o surgimento do ser humano que é onde o Geist começa a tomar consciência se si. O espírito finito humano é o veículo desse espírito cósmico que avança para o saber absoluto. A consciência de si do Geist vai evoluindo com a história humana e todo esse processo se efetiva por meio da dialética do ser, num padrão de tese, antítese e síntese. 

No parágrafo acima procuramos tornar uma pouco mais compreensível a ideia geral do sistema de Hegel, agora vamos os textos de Hegel:  

A razão é espírito quando a certeza de ser toda a realidade se eleva à verdade, e [quando] é consciente de si mesma como de seu mundo e do mundo como de si mesma. Na razão observadora, a pura unidade do Eu e do ser […] O espírito é o Si da consciência efetiva, à qual o espírito se contrapõe – ou melhor, que se contrapõe a si mesma – como mundo efetivo objetivo. Mas esse mundo perdeu também para o Si toda a significação de algo estranho, assim como o Si perdeu toda a significação de um ser-para-si separado do mundo, – fosse dependente ou independente dele. O espírito é a substância e a essência universal, igual a si mesma e permanente: o inabalável e irredutível fundamento e ponto de partida do agir de todos, seu fim e sua meta, como [também] o Em-si pensado de toda a consciência-de-si. Essa substância é igualmente a obra universal que, mediante o agir de todos e de cada um, se engendra como sua unidade e igualdade, pois ela é o ser-para-si, o Si, o agir. Como substância, o espírito é igualdade-consigo-mesmo, justa e imutável; mas como ser-para-si, é a essência que se dissolveu, a essência bondosa que se sacrifica. Nela cada um executa sua própria obra, despedaça o ser universal e dele toma para si sua parte. Tal dissolução e singularização da essência é precisamente o momento do agir e do Si de todos. É o movimento e a alma da substância, e a essência universal efetuada. Ora, justamente por isso – porque é o ser dissolvido no Si – não é a essência morta, mas a essência efetiva e viva.”. (G. W. Hegel. Fenomenologia do Espírito, pp. 304-305)   

Enfim, o sistema filosófico de explicação da realidade criado por Hegel é idealista, pois a origem de tudo está no Espírito em seu processo de autoconhecimento. É um idealismo dialético. 

A ideia central do sistema de Hegel é a de que “o mundo das coisas só existe como emanação do Geist e que em consequência, esse espírito conhece a si mesmo ao conhecer o mundo(Charles Taylor. Hegel: sistema, método e estrutura. pp. 249, 386)   

Tentamos, caro leitor, descrever da melhor forma possível o sistema de Hegel apesar de toda dificuldade que se impõe pela própria natureza desse pensamento difícil e obscuro. Por fim, embora nessas reflexões nós procuramos evidenciar um dos fatores responsáveis pela dificuldade de se entender Hegel, há outros mais e gostaríamos de terminar essa reflexão com a uma citação de uma obra bem interessante:  

A tese deste livro é de que Hegel é um pensador hermético. Mostrarei que há impressionantes correspondências entre a filosofia hegeliana e a teosofia hermética, e como essas correspondências não são acidentais. Hegel estava diligentemente interessado no hermetismo: ele foi influenciado por expoentes desde a sua juventude, e ele mesmo se aliou a movimentos e pensadores herméticos ao longo da sua vida. E não é que eu simplesmente defenda que nós possamos conhecer Hegel como um pensador hermético assim como podemos conhecê-lo como um pensador alemão da Suábia. Não. Eu defendo que devemos conhecer Hegel como um pensador hermético ou não o entenderemos de maneira alguma.”  (Glenn Alexandre Magee. Hegel and the Hermetic Tradition

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