REFLEXÕES | IV – Feuerbach: a ponte entre idealismo e materialismo   

Ronaldo Mota
Ronaldo Mota
Neste espaço discutiremos diversos temas de filosofia, antropologia e cultura de modo crítico e ácido, sempre fugindo do lugar comum e das explicações simplórias. É uma coluna dedicada a quem tem fome e sede de verdade; a quem não confunde assertividade com soberba; a quem é constantemente fustigado pelo chicote espiritual do amor à Sabedoria, que impele sempre para a origem e para os fundamentos das coisas.
Vemos aqui como o naturalismo realizado, ou humanismo, se diferencia tanto do idealismo quanto do materialismo e é, a um só tempo, a verdade unificadora de um e de outro.
(Karl Marx. Manuscritos econômico-filosóficos. Boitempo, p. 127) 

Seguindo a dica de Plekhânov, passemos de Hegel a Feuerbach, tendo em vista que, segundo o próprio Engels, Feuerbach representa “um estágio intermediário entre a filosofia hegeliana” e aquela concebida por ele e Marx. (K. Marx. F. Engels. Obras escolhidas. vol. 3. Rio de Janeiro, Editorial Vitória Limitada, 1963, p. 169)  

Em 1886 Engels escreveu uma obra intitulada Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Nessa obra Engels se propõe a tratar do pensamento de Feuerbach em sua relação com o hegelianismo e com o pensamento de Karl Marx. Remontando ao ano de 1841, quando Feuerbach publicou Das Wessen des Christentums (A Essência do Cristianismo), Engels faz declarações muito interessantes: 

Não insistiremos sobre esse aspecto do processo de decomposição da escola hegeliana. O importante é que a grande maioria dos jovens hegelianos mais combativos, levados pela necessidade prática de lutar contra a religião positiva, tiveram que se voltar para o materialismo anglo-francês. E, ao chegar aqui, viram-se envoltos num conflito com o sistema de sua escola. Para o materialismo, a única realidade é a natureza: no sistema hegeliano, porém, esta é apenas a “exteriorização” da Ideia absoluta, algo assim como uma degradação da ideia: em todos os casos, o pensamento e seu produto, a ideia, são aqui o elemento primário e a natureza, o derivado, o que só pode existir graças à condescendência da Ideia. E, bem ou mal, davam voltas e mais voltas em torno dessa contradição. Foi então que apareceu A Essência do Cristianismo, de Feuerbach. De repente, essa obra pulverizou a contradição criada ao restaurar o materialismo em seu trono. A natureza existe independentemente de toda filosofia, ela constitui a base sobre a qual os homens cresceram e se desenvolveram, como produtos da natureza que são; nada existe fora da natureza e dos homens; e os entes superiores, criados por nossa imaginação religiosa, nada mais são que outros tantos reflexos fantásticos de nossa própria essência. Só tendo vivido, em si mesmo, a força libertadora desse livro, é que se pode imaginá-la. O entusiasmo foi geral – e momentaneamente todos nós nos transformamos em “feuerbachianos”. Com que entusiasmo Marx saudou a nova concepção e até que ponto se deixou influenciar por ela – apesar de todas as suas reservas críticas – pode ser visto em A Sagrada Família.” (K. Marx. F. Engels. Obras escolhidas. 177

Para Engels, portanto, essa obra de Feuerbach teria reestabelecido o materialismo em seu trono e o próprio Marx, nos Manuscritos econômicos filosóficos, de 1844, declarou que o grande feito de Feuerbach” foi, entre outros, a “fundação do verdadeiro materialismo e da ciência real”. (K. Marx. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo, Boitempo Editorial, 2004, pp. 117-118) 

Lênin, estudando a vida de Marx, declarou: “A partir sobretudo de 1836, Ludwig Feuerbach começa a criticar a teologia e a orientar-se para o materialismo, a que, em 1841, adere completamente (A Essência do Cristianismo)”. (V. I. Ulianov (Lênin). Karl Marx (Breve nota biográfica com uma exposição do marxismo). São Paulo, Editora Socialista LTDA, 1983. p. 9.) 

Por fim, G. V. Plekhânov declarou: 

Em contrapartida, está perfeitamente claro para nós que Marx e Engels viam em Feruerbach um materialista. E não pode ser de outra forma para quem quer que se dê ao trabalho de estudar a fundo a doutrina de Feuerbach.” (G. V. Plekhânov. Os princípios Fundamentais do Marxismo. São Paulo, Ed. Hucitec, 1978, pp. 10-11) 

Todavia, as palavras em Hegel, ou em seus discípulos, nunca possuem apenas os sentidos comuns empregados por aquilo que Hegel denominava consciência comum… 

Aquele que até aqui nos foi apresentado como um mero materialista, no posfácio da segunda edição alemã de A Essência do Cristianismo, declarou: 

considere-se que o ateísmo – pelo menos na acepção desse livro – é o próprio segredo da religião (…) na sua verdadeira essência, em mais nada crê senão na verdade e divindade da essência humana”.
(L. Feuerbach. A Essência do Cristianismo. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 427) 

Nas Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia (1842), Feuerbach declarou: 

Por conseguinte, a nova filosofia, enquanto negação da teologia, que nega a verdade da paixão religiosa, é a posição da religião. O antropoteísmo é a religião autoconsciente – a religião que a si mesma se compreende.”  

Segundo Charles Wackenheim:  

Logicamente, Feuerbach transferirá para a própria natureza a divindade da espécie humana, e sua religião da humanidade se converterá em religião da natureza divinizada. Ele não busca destruir a religião ou o sagrado, mas transformar o sagrado e fundar uma nova religião, a religião da humanidade.” (Charles Wackenheim. La quiebra de la religión según Karl Marx. Barcelona, Ediciones Península, 1973, p. 123) 

Pois é, caro leitor, como podemos ver, a coisa parece mais complexa do que inicialmente se imagina… aquele que é apresentado por Marx e Engels como o materialista, parece um panteísta puro sangue… 

Sendo assim, cabe a nós tentarmos entender melhor o que é exatamente esse materialismo religioso de Feuerbach, exposto em sua obra Das Wessen des Christentums, e o que dessa visão de mundo foi adotado por Karl Marx em seu materialismo histórico. 

3 COMENTÁRIOS

  1. Olá 👋

    A sua afirmação de que Feuerbach seria um “panteísta puro sangue” demonstra uma profunda incompreensão do pensamento dele e um desconhecimento da filosofia em geral. Panteísmo é a doutrina que identifica Deus com o universo, ou seja, q Deus é a natureza e a natureza é Deus. Feuerbach, em sua crítica à religião, buscava justamente desmistificar essa visão, argumentando que Deus é uma projeção da essência humana.

    Ao rotular Feuerbach como panteísta, vc não apenas comete um erro factual grave, como também ignora a complexidade e a riqueza do pensamento feuerbachiano. A obra de Feuerbach é marcada por uma crítica radical à teologia tradicional e uma busca por uma nova forma de humanismo, que valoriza o ser humano e suas capacidades. Reduzir essa rica produção filosófica a um rótulo simplista e equivocado é um desserviço à compreensão do pensamento de Feuerbach e de sua importância para a história da filosofia.

    É fundamental que um texto que se propõe a analisar a obra de um filósofo o faça com rigor e precisão, evitando generalizações e rótulos simplistas. A afirmação de q Feuerbach seria um “panteísta puro sangue” é um exemplo claro de como a falta de cuidado e conhecimento pode levar a interpretações equivocadas e distorcidas.

    Abraços do Filodebates.

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