REFLEXÕES | II – O sonho de Hegel – Parte 1

Ronaldo Mota
Ronaldo Mota
Neste espaço discutiremos diversos temas de filosofia, antropologia e cultura de modo crítico e ácido, sempre fugindo do lugar comum e das explicações simplórias. É uma coluna dedicada a quem tem fome e sede de verdade; a quem não confunde assertividade com soberba; a quem é constantemente fustigado pelo chicote espiritual do amor à Sabedoria, que impele sempre para a origem e para os fundamentos das coisas.

Novamente, o homem queria aceitar os produtos de sua imaginação como expressões validas de si mesmo. Novamente as fronteiras entre o eu e o não-eu perturbavam-se ou se apagavam; invocavam-se como critérios testemunhos que não eram o da razão; e esse desespero, essa nostalgia do irracional orientava os espíritos em sua busca por novas razões para viver.” – Albert Béguin. L’âme romantique et rêve: Essai sur le Romantisme allemand e la Poésie française.  

 

Em minha última reflexão, O desafio de Plekhânov, mostrei que sem entender o pensamento de Hegel e cosmovisão de Feuerbach, não é possível entender adequadamente o pensamento de Karl Marx. Portanto, seguindo o conselho do pai do marxismo soviético, retrocedemos na história do pensamento até Hegel e, com a ajuda de alguns estudiosos, começamos a passear pela Fenomenologia do Espírito e pela Ciência da Lógica… 

E lá, no mundo da Fenomenologia, nos deparamos com o monstruoso labirinto da dialética da consciência erigida por Hegel. E já no primeiro tópico, onde ele se propõe a analisar a certeza sensível, vemos nosso anfitrião chegando à conclusão de que a consciência comum das pessoas se contradiz ao considerar as coisas sensíveis como um isto que é. Segundo ele, a afirmação de algo se dá no agora, mas, logo que afirmamos, o agora passa e deixa de ser.  

Agora: já deixou de ser enquanto era indicado. O agora que é, é um outro que o indicado. E vemos que o agora é precisamente isto: enquanto é, já não ser mais. O agora, como nos foi indicado, é um que-já-foi – e essa é sua verdade; ele não tem a verdade do ser.” (G. W. Hegel. Fenomenologia do Espírito, pp. 90-91) 

Segundo Hegel, nossa consciência visa o ser individual, mas capta algo que ele chama de universal.  

A verdade do isto sensível para a consciência tem de ser uma experiência universal; A certeza sensível não se apossa do verdadeiro, já que a verdade dela é o universal, mas a certeza sensível quer captar o isto.”. (G. W. Hegel. Fenomenologia do Espírito, pp. 92,95)  

A análise da consciência comum, segundo Hegel, revelaria uma contradição na própria consciência e naquilo que nós normalmente entendemos como o ser das coisas sensíveis. Como bem nos lembrou Charles Taylor, em sua monumental análise do sistema de Hegel, “há um movimento dialético nas coisas porque elas se encontram dilaceradas pela contradição”. (Charles Taylor. Hegel: sistema, método e estrutura. P. 157) 

Ora, de acordo com C. Taylor, a Fenomenologia do Espírito foi construída por Hegel como “uma espécie de introdução à Lógica” (Idem, p. 243); e a Lógica seria “a única candidata real ao papel de prova dialética estrita” do sistema de Hegel (Idem, 253).  

Naturalmente, portanto, passamos da Fenomenologia à Lógica. E o que nós encontramos logo no início da Ciência da Lógica de Hegel, em seu primeiro livro, intitulado A Doutrina do Ser?     

O começo é, portanto, o puro ser“. (G.W. Hegel. Ciência Lógica, p. 35) 

O puro ser e o nada são, portanto, a mesma coisa.” (G.W. Hegel. Ciência Lógica, p. 40) 

Segundo Hegel, o começo da filosofia é o puro ser, sem nenhuma determinação, pois se tivesse alguma determinação, de acordo com ele, não seria o puro ser. Todavia, esse conceito de puro ser, como puro indeterminado, conduz Hegel à afirmação de que, nesse sentido, o puro ser, ou ser absoluto, apresenta-se como nada. 

Todavia, não é nada e tem que vir a ser algo. O começo não é o puro nada, senão um nada do qual tem que surgir algo; logo, o ser também já está contido no começo. O começo contém, consequentemente, ambos: o ser e o nada; é a unidade do ser e do nada; isto é, é um não-ser que ao mesmo tempo é ser, e um ser que ao mesmo tempo é não-ser.“. (G.W. Hegel. Ciência Lógica, p. 37)  

Enfim, para Hegel, essa concepção de ser é a base de tudo aquilo que, ao modo dele, possa ser chamado de realidade. Charles Taylor, chamou isso de dialética ontológica (Idem, pp. 157,244) e Herbert Marcuse, citando Hegel, afirmou:  

A contradição é a raiz de todo o movimento e de toda a vida; toda realidade é autocontraditória“. (Hebert Marcuse. Razão e Revolução: Hegel e o advento da teoria social, p.134)    

Não se assuste, caro leitor, pois você não leu errado; é tudo isso mesmo que você está lendo. Se agora você está pensando: não dá para entender isso! Parabéns! Você entendeu tudo! E não pense que estou brincando de Hegel, nada disso! Simplesmente, essa concepção de ser hegeliana é contraditória ou, como ele diria, dialética e não podemos entendê-la propriamente; ela parte da recusa dos princípios primeiros da razão humana; podemos apenas descrevê-la, para que outras pessoas saibam o que Hegel pensou ou sonhou…   

Essa concepção de ser de Hegel é base de todo seu pensamento e é absolutamente impossível sequer descrever seu sistema adequadamente sem conhecê-la. Agora, nos resta saber, seguindo a indicação de Plekhânov, qual é a relação dessa dialética do ser com o marxismo de Karl Marx.  

 

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