Era Vargas e Identidade nacional
Vargas foi possivelmente o primeiro estadista brasileiro preocupado em dar traços claros à criação de uma identidade nacional. Seu intuito com isso era afirmar-se como o legítimo representante da identidade brasileira que ele mesmo criou e, consequentemente, pintar seus críticos e adversários políticos como antipatriotas perante o povo.
Deu certo.
Da fundação da República pra cá, é difícil pensar em outro presidente que tenha sido tão influente para a constituição da tal “identidade brasileira“, em termos gerais.
Para criar esta identidade, Vargas potencializou elementos culturais já presentes, como Futebol, Samba e Carnaval, e reprimiu com o mesmo vigor elementos culturais tidos como nocivos a ela: interveio de cima para baixo em centenas de escolas e clubes de comunidades estrangeiras, especialmente durante a vigência da Segunda Guerra Mundial. Os povos italiano, alemão e japonês, cujos descendentes são maioria demográfica em diversas regiões do Brasil, tiveram suas contribuições apagadas da identidade nacional criada e imposta por Vargas.
Nesse mesmo contexto, o Rio de Janeiro foi agraciado como o genuíno difusor da cultura nacional, ao passo que regiões muito mais poderosas como SP e MG foram alijadas do processo. Até hoje, a produção cultural paulista e mineira é apresentada como regional, ao passo que a carioca é apresentada como nacional, e isto tem uma razão: até que Vargas chegasse ao poder, eram justamente MG e SP quem se alternava no poder federal; por uma questão estratégica, se fazia necessário afirmar uma identidade nacional que não coincidisse com a identidade local de nenhum desses estados, já que a ideia era diminuir sua influência em nível nacional.
Não é exagero lembrar que SP, MG e RS são unidades federativas que apresentaram, em alguns momentos de História, características de combate ao despotismo em nível federal, tendo a insurreição paulista (de 1932) ocorrido durante o governo Vargas. Não interessava ao presidente destacar qualquer identidade local que pudesse colocar seu plano de domínio nacional em risco. Como a elite carioca era composta basicamente por funcionários públicos carreiristas, concluiu-se que estes eram inofensivos em comparação a mineiros, paulistas e gaúchos. Então o Rio ganhou o Brasil.
A título de ilustração, é esta a razão pela qual o samba até hoje é apresentado, dentro e fora do Brasil, como uma música brasileira, ao passo que o sertanejo, mais popular no interior do país, é tido como música regional. É também por esta razão que Getúlio Vargas escolheu um clube de futebol carioca (e não um paulista, nem um mineiro) para ser propagandeado por rádio e jornais impressos como o clube na Nação: o clube de regatas do Flamengo.
O Novo Brasil formado sob a coerção de Vargas visava apagar identidades regionais em detrimento de uma identidade nacional, cuja matriz formadora foi o Rio de Janeiro, sede da capital federal e da maior parte das empresas estatais brasileiras.
Festividade e ausência de moralidade política
Embora bastante propositiva (e excludente) do ponto de vista étnico-cultural, a identidade nacional formada na era Vargas pouco versava sobre valores políticos, exceção feita ao próprio culto à personalidade do presidente. A cultura varguista estimulava a ordem, o respeito, a disciplina e o patriotismo, elementos que levavam, sem exceção, de volta à personalidade do presidente da República.
Elementos como respeito à propriedade privada, respeito aos direitos individuais, respeito ao direito de manifestação e à livre expressão de pensamento não foram incluídos na personalidade brasileira. Neste ponto, é relevante lembrar que os EUA, por exemplo, têm em sua identidade nacional um senso moral claríssimo, já que tiveram que guerrear contra os ingleses por sua independência e liberdade; no Brasil, por outro lado, a identidade nacional tradicionalmente se deu em relação à festa (Carnaval, Samba e Futebol), e não à moralidade política.
Não à toa, a Copa do Mundo foi, desde o final dos anos 1930, o evento em que se viveu o “brasileirismo” com mais intensidade, elevando a camisa da seleção como o maior símbolo de pertencimento a este país. Repare que não é a bandeira, nem o hino: é a camisa de futebol. O brasileirismo varguista foi cunhado para ser vivido em meio a música, batucada e catarse; por motivos óbvios, não foi projetado para agir contra o Estado, ou governantes tirânicos.

É muito pertinente lembrar que a discussão política, no Brasil, esteve restrita a círculos sociais muito seletos não somente na Era Vargas, mas também durante o regime militar e mesmo no início da redemocratização do país. Durante essas décadas, o futebol, a novela e a música geraram, junto ao povo, muito mais mobilização e interesse que a política.
O brasileirismo, cunhado artificialmente por Vargas nos anos 1930, nos ensinou que o que interessa é a alegria de ser brasileiro, que pode ser manifestada de diversas maneiras; a política é desinteressante, porque só tem ladrão. Neste estado de ideias, décadas de governos nocivos ao povo foram encobertos por novela, futebol e samba. Este quadro só começou a ser alterado em meados dos anos 2010.
E então chega 2020, e a política engoliu o brasileirismo.
Já não se pode sambar, já não há festa; não há praia, não há futebol. Todas as alegrias do brasileirismo foram liquidadas pela política, até segunda ordem. O povo brasileiro aprende, da maneira mais traumatizante possível, que não tem direito a nada, e que o brasileirismo era, na verdade, uma concessão: pôde-se sambar, enquanto o Estado deixou. Pôde-se jogar futebol, enquanto o Estado deixou. Pôde-se trabalhar, enquanto o Estado deixou. Pôde-se sair para a rua, enquanto o Estado deixou. Mas se o Estado não deixar, nada pode. Se o Estado quiser te obrigar a morrer de fome, ele pode, e a corte Suprema de nosso país endossará isso como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Quis o destino que, à época da pandemia, o presidente da República fosse um homem disposto a bater de frente com tudo e todos os que se colocam a favor da repressão e da retirada de direitos constitucionais dos cidadãos brasileiros. Não tenha dúvida: nenhum presidente desde o regime militar lutaria de forma tão voraz pela proteção das liberdades mais básicas dos brasileiros, seja o direito de ir e vir, seja o direito de propriedade, seja o direito de expressão ou de associação. Ou você acha que Dilma Rousseff se levantaria contra os abusos policiais contra vendedores e ambulantes nas ruas? Ou você acha que FHC peitaria a OMS para garantir o direito de ir e vir de cada brasileiro? Ou você acha que Lula iria contra o Judiciário para defender o direito de manifestação do povo contra o Estado autoritário?

A crise do Covid-19 não deixa dúvidas de que nossa constituição é uma mentira, a qual Bolsonaro e seus apoiadores parecem ser os únicos a identificar como tal. Direito de propriedade? – Ninguém pode abrir seus comércios ou mesmo vender seus produtos em via pública. Direito de ir e vir? – Lockdown nas cidades e multas para quem circula. Liberdade de expressão? – Judiciário manda prender manifestantes pacíficos e desarmados. Liberdade de associação? – Proibição de manifestações em via pública.
Não tem Carnaval, não tem Samba, não tem praia, não tem Futebol. Tudo aquilo que nos foi apresentado como a “essência” do brasileiro agora nos é retirado por governantes corruptos e autoritários, que enxergam na crise uma chance de conquistar poder e, no futuro, apresentar-se como os salvadores do povo, se a conspiração der certo.
A Nova face do brasileirismo
Não há dúvidas de que o legado político do Covid-19 será uma vigilância muito maior da parte de todo e qualquer cidadão sobre o que acontece na política. O camelô que não pode vender seus produtos na rua, o pequeno comerciante que não pode abrir sua lojinha, o funcionário de uma grande rede que foi demitido, o hoteleiro que faliu, o restaurante que demitiu metade de seu quadro… Os milhões de brasileiros prejudicados pelas medidas autoritárias de governadores sedentos por sangue, bancadas por nosso “valoroso” STF, serão lembradas.
O brasileiro que começou a se interessar por política no impeachment de Dilma, e se envolveu na subsequente eleição de Bolsonaro agora entendeu que, se não lutar por seus direitos e liberdades, estes mesmos lhes serão retirados num estalar de dedos. Milhões já foram demitidos, milhares já faliram, e centenas já se suicidaram. A tragédia humanitária no Brasil já está dada, e vai se agravar mais ainda enquanto os conspiradores do poder tiverem suporte jurídico para continuar tiranizando seu próprio povo.

Do samba à bandeira da liberdade
O único consolo em meio a tudo isso é que tempos difíceis formam pessoas fortes; o sofrimento, a fome, a miséria e a violência que serão acarretadas pelos crimes cometidos pelos governadores e prefeitos contra o Brasil moldarão cidadãos que carregarão, em sua identidade, a preparação para a guerra contra o despotismo, pois isto se tornará condição de sobrevivência.
Ao fim disso tudo, a única certeza é que o brasileirismo terá a cara da liberdade, agora que a festa acabou.
fim
Revista Esmeril - 2021 - Todos os Direitos Reservados
Muito bom. Precisamos tratar desse assunto! Por exemplo, escrevi o seguinte sobre o tema:
“… atrevo-me a dizer que há, sim, dois ‘Brasil’ antagônicos e complementares; cada qual com sua ‘festa cívica’. […] Por um lado, há… a brasilidade burocrática, legalista, formalista, controladora, moralista, ordeira, e idealista. Por outro lado, há… a brasilidade livre, mulata, sincrética, debochada, bagunçada, e hedonista. O primeiro Brasil celebra o Sete de Setembro; o segundo, o Carnaval.
Já houve tentativas de fundir os dois. Getúlio Vargas, por exemplo, tentou cooptar o Carnaval. […] Vargas… queria fazer do Rio de Janeiro a quintessência da brasilidade e, portanto, o Carnaval de verdade tinha que ser o do Rio; porém, não qualquer coisa do Rio, mas o desfile das escolas de samba. Afinal, as escolas de samba representam ordem, forma, e controle. Vargas queria subjugar o ‘Brasil carnavalesco’ ao ‘Brasil militaresco’.
[…]
Cada sociedade tem sua história, e a do Brasil é inseparável do ‘sexo’. […] Liberdade gera, ao mesmo tempo, dois efeitos antagônicos: homogeneidade e diversidade. As relações humanas tornam algumas coisas comuns, mas criam tantas outras incomuns — que se misturam, que geram novas, e assim segue. […] Isso é puro sexo: dois juntam-se e formam um terceiro comum; mas os três são diferentes entre si. É assim em qualquer lugar, mas no Brasil, por uma série de acidentes históricos, isso fica mais evidente. Liberdade, portanto, é como sexo; é como Carnaval.
Não precisa gostar do Carnaval para reconhecer no que nele há de positivo. O Carnaval é forma como os brasileiros celebramos nossa liberdade em comunidade. Eis, em fim, meu ponto: durante o Carnaval, cada um de nós individualmente celebra, cada um a sua maneira, a liberdade que todos temos em comum — a liberdade em ser ‘brasileiro’.”
O texto completo está aqui: https://medium.com/@sancho.brasil/carnaval-a-liberdade-em-ser-brasileiro-392d64186c94
Espero que esse “brasileirismo” de Vargas seja sepultado para sempre no lixo da história e que o povo brasileiro aprenda a exigir e lutar por sua liberdade.
Parabéns pelo texto.
Muito bom. Brilhante análise. A centralização do governo Vargas deixou raízes profundas no Brasil.
Belíssimo texto. Verdadeiro, claro, objetivo. Uma aula.
Sensacional.
“Já não se pode sambar, já não há festa; não há praia, não há futebol. Todas as alegrias do brasileirismo foram liquidadas pela política, até segunda ordem. O povo brasileiro aprende, da maneira mais traumatizante possível, que não tem direito a nada, e que o brasileirismo era, na verdade, uma concessão: pôde-se sambar, enquanto o Estado deixou. Pôde-se jogar futebol, enquanto o Estado deixou. Pôde-se trabalhar, enquanto o Estado deixou. Pôde-se sair para a rua, enquanto o Estado deixou. Mas se o Estado não deixar, nada pode. Se o Estado quiser te obrigar a morrer de fome, ele pode, e a corte Suprema de nosso país endossará isso como se fosse a coisa mais natural do mundo.” Absoluto!!!