Cenário: Dois amigos estão sentados à mesa. Sobre a mesa há dois cálices de vinho e duas garrafas – uma, já vazia. Personagens: Ideu e Egídio
CENA
[Ideu] Pois bandido bom é bandido morto!
[Egídio] Como?
[Ideu] Não achas?
[Egídio] Estávamos falando de futebol. De onde veio isso?
[Ideu] Da TV. Acabou de passar uma notícia de homicídio. Me lembrei da frase.
[Egídio] Ah! Agora entendi onde queres chegar. Tens certeza que queres seguir por esse caminho?
[Ideu] E tu lá conheces outro?
[Egídio] Hahahahahaha! Está bem. Me pegaste nessa; admito…
[Ideu] Tchê, a violência está demais.
[Egídio] Com certeza. Quando a violência chega até os mais ricos, é porque já está fora de controle há muito tempo.
[Ideu] Não vais me dizer que violência é resultado das desigualdades sociais!?
[Egídio] E eu disse? A propensão ao mal é da natureza humana. Acreditar que pobres têm maior propensão ao crime é puro preconceito. Simplesmente não nego que a prestação de serviços públicos, incluindo a segurança, é pior para os mais pobres. Eles sofrem com a insegurança muito antes dos mais ricos. Quando o caos chega nos ricos, é porque a situação entre os mais pobres já é péssima há muito tempo.
[Ideu] É por isso que só matando…
[Egídio] Sério?
[Ideu] Sim. Não se podem deixar as pessoas a mercê da bandidagem. É preciso colocar ordem. Para acabar com essa situação é preciso ser duro e enérgico. Por isso que eu disse: bandido bom é bandido morto. Concordas?
[Egídio] Sim e não.
[Ideu] Hihihihihi! Sempre a mesma resposta!
[Egídio] Sempre. Tu me conheces! Tudo bem, mas o ponto aqui não é o que eu acho. Eu posso concordar contigo, mas é preciso descobrir por que tu achas tal expressão verdadeira. Tu propuseste o jogo. Topas?
[Ideu] Topo. Claro!
[Egídio] Disseste que bandido bom é bandido morto. Quem é bandido? Melhor dizendo, o que faz de alguém um bandido?
[Ideu] Bandido é todo aquele que ameaça a segurança de alguém.
[Egídio] Um motorista em alta velocidade ameaça a segurança de outros. É bandido?
[Ideu] Não.
[Egídio] Mas um motorista imprudente ou embriagado age contra a lei e coloca a segurança de outros em risco, não?
[Ideu] Sim, mas…
[Egídio] Então, é bandido e merece ser morto!
[Ideu] Pára com isso! Me deixa terminar o raciocínio! Claro que não!
[Egídio] Perdão. Só estava seguindo a conclusão do que tu disseste. Por favor, continua.
[Ideu] Abobado… Ainda bem que sou teu amigo.
[Egídio] Por isso que eu faço dessas contigo, oras. Outro já teria me agredido, mas tu estás acostumado.
[Ideu] Até demais… Onde é que eu estava?
[Egídio] Tu irias diferenciar um bandido de um motorista borracho.
[Ideu] Sim. Pode-se assumir que o motorista imprudente ou bêbado não acredita estar colocando em risco à segurança dos outros ou à própria, ainda que esteja equivocado. Ele não está ameaçando os outros deliberadamente em busca de uma vantagem. Um bandido necessariamente usa a ameaça à segurança alheia para benefício próprio.
[Egídio] Então, um estelionatário ou um corrupto, por não ameaçar a segurança de ninguém, ao menos, não necessariamente, esse não seria bandido, apesar de ilicitamente buscar algum benefício para si. É isso?
[Ideu] Também é bandido.
[Egídio] O sonegador de impostos também busca ilicitamente benefício para si. É bandido, pois. Pela lógica, se bandido bom é bandido morto, devemos colocar todos os sonegadores num paredão e matar-nos todos.
[Ideu] É diferente. Imposto é roubo.
[Egídio] Adoraria conversar sobre isso, mas é outro assunto. Deixemos para outro dia. Para facilitar, troca o sonegador pelo contrabandista. Não, esse caso é semelhante ao sonegador. Troca pelo ladrão que furta algo. No furto, não há ameaça alguma; e se for furto de uso, em que o objeto é devolvido, a perda do proprietário ainda pode ser irrisória. Quem furta é bandido? Furtou, merece morrer?
[Ideu] Bandido, é; mas quando se fala em “bandido bom é bandido morto” o que se quer é combater a violência.
[Egídio] Mas são duas coisas distintas! Percebes o problema?
[Ideu] Acho que sim.
[Egídio] Alguém pode falar a mesma frase e pensar que se deva matar toda e qualquer pessoa que cometer um ilícito – incluindo sonegador, quem cruzar sinal vermelho, ou deixar de devolver uma caneta esferográfica; e seria impossível perceber a diferença sem conversar com a pessoa. E aí, como faz?
[Ideu] Pois é…
[Egídio] Não se corre o risco de ser confundido com essa pessoa?
[Ideu] Sim.
[Egídio] Mas aí até explicar que focinho de porco não é tomada, já perdeste o debate. Viste como a expressão é ruim? “Bandido bom é bandido morto” tem uma contradição, até.
[Ideu] Qual?
[Egídio] Por exemplo, a pessoa que crê ser correto esse tipo de justiçamento, não passaria ela a ser uma ameaça à segurança das pessoas?
[Ideu] Como assim?
[Egídio] Ela poderia matar qualquer pessoa que tenha feito algo contra a lei, não? Um “fora-da-lei” é um bandido, não?
[Ideu] Verdade.
[Egídio] Pela própria lógica dela, ela teria que matar a si mesma. Eis a contradição!
[Ideu] Sim, mas só se ela quisesse ser justiceira. Ela poderia apenas defender a morte como única pena para qualquer ilícito; com a condenação vindo depois de um processo com ampla defesa.
[Egídio] Boa! Achei que tivesse te pego nessa.
[Ideu] Me tirando para mulher fácil? Não é assim para me pegar, não! Sou do tipo “fazida”!
[Egídio] Hahahahaha! Tchê, a gente já é gaúcho. Falando assim, ainda vão nos tirar para viados.
[Ideu] Como se nunca tivesse acontecido, não?
[Egídio] Bah! Melhor nem lembrar. Deixa assim. Hahahahahaha! Tudo bem, voltando à conversa! Já concordamos que justiçamento é um problema, pois cai em contradição.
[Ideu] Sim.
[Egídio] Me deixa ver se entendi. Quando tu disseste que era preciso ser duro e enérgico, não estavas defendendo justiçamento, mas pena de morte para todo mundo. É isso? Tolerância zero?
[Ideu] Não. Claro que não. Eu disse que o problema é com a violência. Só nesse contexto que “bandido bom é bandido morto”. Quando o bandido ameaça a segurança e a vida dos outros, aí não vejo problema em tirar a vida dele.
[Egídio] Mas não é isso o que frase diz.
[Ideu] Não. Já concordei com isso. Não é justiçamento. É legítima defesa!
[Egídio] Pois é por isso que não posso concordar que “bandido bom” seja “bandido morto”. Legítima defesa não tem nada que ver com isso. Ademais, se o problema é ameaça à segurança, o que se quer é acabar com a ameaça; não, com o ameaçador.
[Ideu] Exato, mas quem ameaça a vida de outro coloca a sua própria vida em risco.
[Egídio] Mas haveria diferença entre querer matar e não se importar que morra?
[Ideu] Substancial? Nenhuma. São casos de dolo.
[Egídio] Dolo em legítima defesa?
[Ideu] Não. Me refiro a quem ameaça. A legítima defesa acaba quando a ameaça cessa.
[Egídio] Aí, no caso de excesso, passas tu a ser a ameaça. Não é isso?
[Ideu] Exato.
[Egídio] Mas tu viras o bandido.
[Ideu] Sim. A linha entre o justiceiro e o bandido é tênue. Tanto que nas histórias o justiceiro é tratado por “anti-herói”.
[Egídio] Boa! Esse era o ponto que eu gostaria que tu enxergasses. “Bandido bom é bandido morto” é a lógica do justiceiro, mas é contraditória.
[Ideu] Ah! Agora te entendi!
[Egídio] Não é uma bandeira que eu defenderia.
[Ideu] Mas como fazer quando a situação concreta é caótica?
[Egídio] N’O Príncipe, Maquiavel defende convocar-se alguém tipo anti-herói para acalmar os ânimos e restaurar a paz pública.
[Ideu] E depois?
[Egídio] Depois, o príncipe deve enforcar o ditador em praça pública. Afinal de contas, “bandido bom é bandido morto”!
[Ideu] Hahahahahahaha! Tu já bebeste demais…
[Egídio] Não bebi demais. Nem tu, aliás. [Garçom, mais uma garrafa, por favor!] Estou brincando. Maquiavel não explica a razão, mas ele fala que é para enforcar, mesmo. Só não acredito que seja por isso.
[Ideu] Qual seria o motivo, então?
[Egídio] Ah… Boa pergunta, mas isso é assunto para a próxima rodada.
fim