Crônica de Ano-Novo
Utilidade pública: na estação Paraíso do metrô paulistano há um imenso painel que exibe o poema “Ismália”, de Alphonsus Guimaraens. É um belo trabalho; é simples, mas profundo, como os melhores poemas. Os críticos, cujo grosso da profissão é colocar nome em tudo, dizem que o autor é “simbolista”, e que o poema em questão é o “exemplo máximo do movimento simbolista brasileiro”. Talvez seja. Honestamente: tanto faz. O que me interessa é a realidade para a qual o poema aponta, é a verdade suprema que perpassa este e o outro mundo. E quem, afinal, é Ismália? Ora, Ismália c’est moi. Mas mantenhamos a leveza da crônica. Ela, ao ver duas luas, uma no Céu e outra no mar, enche-se de vontades conflitantes; no seu interior há uma luta entre o desejo de ascender e o impulso de se entregar ao abismo.
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no Céu,
Viu outra lua no mar.
É curioso: no metrô, a minha perspectiva da leitura sempre me leva para cima, porque tento ler o poema rapidamente enquanto subo na escada rolante — gosto de imaginar que o sujeito responsável pela fixação do painel instalou-o ao lado da escada de caso pensado. Mas o que vejo à saída da estação não é a Lua, senão um Sol que se esconde atrás de ameaças de chuva. Isso pode arruinar a noite de réveillon. Dirijo-me à paróquia carregando a intenção de agradecer pela renovação das esperanças; mas, antes de entrar, tenho de me recompor — às vezes, amigos são insensíveis para a gravidade de certos momentos; é claro que não fazem isso por mal. Não fiquei para a Missa.
Saí da Igreja e me dirigi à padaria, do outro lado da rua, onde descobri que iria de carona. A sutil alegria em saber que não haveria custos de carro de aplicativo, no entanto, não foi longe: longuíssima foi a espera por um amigo retardatário. Ir de carona é ir à mercê do semancol do alheio — a vantagem é que frequentemente vale a pena. Por que a demora? Porque o amigo estava na Missa, mais precisamente: ouvindo a homilia — mais tarde, assenti com sua opinião escandalosa, mas sincera: “Que homilia demorada e chata!”. Estávamos nos últimos suspiros do ano velho, e eu me deixava conduzir para o abismo.
Enfim, chegamos à casa do anfitrião das nossas alegrias, um sujeito músico da OSESP. Mas eu não sei o que foi aquilo. Dizem que a comunhão dos mesmos gostos é a verdadeira argamassa disto que chamamos “amizade”… Não encontro explicação melhor. Era noite de réveillon. Vou compor, de memória, o panorama da morte do velho: “Uirapuru” e “Boi Bumbá”, de Waldemar Henrique; e “Cantiga de Nossa Senhora”, de Luiz Peixoto e Hekel Tavares. A voz que acompanhava o violoncelo era a de uma soprano. Mas não só, nós fumamos cachimbo: um confrade prestimoso trouxera billiards, bulldogs, standard canadians e alguns tabacos. Toda a conversação foi embalada pela fumaça, uma coisa bonita de se ver — a amiga fotógrafa que o diga.
Também falamos sobre Literatura, sobre, veja só, Sociologia; arrisquei até conselhos acerca da composição de peças de teatro — coisa que não entendo. Como é lindo o estilo literário de Gilberto Freyre em “Casa Grande & Senzala”! Mas quem consegue colher uma rosa e não soltar timidamente um urro de dor de dedo espetado? O que eu estou dizendo é que “até no riso tem dor o coração, e o fim da alegria é tristeza”. Isso porque, em cada detalhe, em cada comentário despretensioso e engraçado, em cada ação de gentileza, eu via o reflexo de um compromisso não correspondido: era a Lua refletida no mar, no abismo que me atraía.
E foi uma grande decepção aquilo que vimos no Céu: fogos mixurucas, dois ou três, anunciaram à congregação dos justos o nascimento de 2025. Pudera, pois nosso arraial, cercado pelos prédios paulistanos, era como um vale no qual o som e a luz da vitória chegam como ecos longínquos do campo de batalha… Lua do abismo. Não choveu. Confesso: a pontinha de tristeza advinha do fato de que, sem justificativas convincentes, decidi não cumprir as obrigações morais para com a religião. É claro que havia as tribulações da expectação pelo nascimento do Salvador, coisas que sempre, invariavelmente, viram a vida do cristão de pernas para os ares nas últimas duas semanas de dezembro. Sem justificativas. E minha culpa recrudescia à vista de cada expressão de contentamento, de alegria, de júbilo. Por que eu não fiquei para a Missa?
Decidi omitir os nomes e mais alguns detalhes daquela ceia de Ano-Novo porque, se não o fizesse, talvez eu me passasse por um deslumbrado idiota. A propósito: não é minha intenção fazer desta crônica um texto hermético, cuja chave de interpretação esteja na mão de meia dúzia de entendedores, testemunhas iguais a mim. É preciso, porém, entender que Ismália pode falar pela boca de todos nós, sejamos heróis, sábios, santos ou depravados. E agora, ela fala na boca do Apóstolo: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço”.
E faço uma advertência aos cronistas: em festas de réveillon, a quantidade de detalhes relevantes pode ser demasiadamente grande, o que deve exigir do escritor muito mais do que uma tarde de trabalho. Assim, é aconselhável afastar-se dos smartphones, esses sanguessugas de atenção.
Adiante. A certa altura da festa, fui convidado por um pequeno grupo de amigos a conhecer dois ambientes interessantíssimos da casa, guiado pelo anfitrião: a biblioteca e o escritório — que ficavam separados por um lance de escadas. Fiz uma descoberta nesta noite: no escritório, que também era um estúdio, havia duas harpas, instrumentos que faziam jus ao estereótipo do seu tipo: firulas entalhadas na madeira, tonalidade dourada envelhecida etc. Contrariando os violinos, as harpas são melhores quanto mais nova for a madeira com a qual elas são construídas. Daí que harpas antigas têm a mesma utilidade do calendário do ano passado distribuído, a título de brinde, aos assíduos frequentadores da farmácia: só valem pelas imagens que ilustram a passagem das estações do ano.
Finda a celebração, e cansado como se tivesse empurrado montanhas, fui convidado para dormir na casa de um casal de amigos; o que não é do meu feitio, mas decidi aceitar, antes por eles do que por mim — é difícil arrancar hobbits de suas tocas. Naturalmente, chegamos à casa de madrugada, quando fiz, acho, a maior descoberta da noite: os amigos tinham como animal de estimação uma cobra — corn snake, eles disseram, um “bichinho inofensivo que só come ratos congelados”. Dormi como uma grande e solitária pedra sobre a relva.
E na manhã seguinte, o Sol, como um reflexo da eternidade. Era o início do novo ano. Àqueles que ainda não deixaram o cérebro fritar na banha de porco das redes sociais, um fato é patente: nesta vida, um dos agentes da felicidade são os amigos. Alguém devia ter dito isso à melancólica Ismália.
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao Céu,
Seu corpo desceu ao mar…
***
Obrigado, Meri! É verdade: antes bons poemas nos paredões das estações do que a indecifrável — e feia — arte contemporânea.
Realmente é um lindo poema e bom mote para sua crônica! Quiçá outras estações exibissem poemas. Fico imaginando os paredões recebendo projeções luminosas de poemas!