CRÔNICA | Ismália

Vitor Marcolin
Vitor Marcolin
Ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária -- Antologia 200 Anos de Independência (2022). Nesta coluna, caro leitor, você encontrará contos, crônicas, resenhas e ensaios sobre as minhas leituras da vida e de alguns livros. Escrevo sobre literatura, crítica literária, história e filosofia. Decidi, a fim de me diferenciar das outras colunas que pululam pelos rincões da Internet, ser sincero a ponto de escrever com o coração na mão. Acredito que a responsabilidade do Eu Substancial diante de Deus seja o norte do escritor sincero. Fiz desta realidade uma meta de vida. Convido-o a me acompanhar, sigamos juntos.

Crônica de Ano-Novo

Utilidade pública: na estação Paraíso do metrô paulistano há um imenso painel que exibe o poema “Ismália”, de Alphonsus Guimaraens. É um belo trabalho; é simples, mas profundo, como os melhores poemas. Os críticos, cujo grosso da profissão é colocar nome em tudo, dizem que o autor é “simbolista”, e que o poema em questão é o “exemplo máximo do movimento simbolista brasileiro”. Talvez seja. Honestamente: tanto faz. O que me interessa é a realidade para a qual o poema aponta, é a verdade suprema que perpassa este e o outro mundo. E quem, afinal, é Ismália? Ora, Ismália c’est moi. Mas mantenhamos a leveza da crônica. Ela, ao ver duas luas, uma no Céu e outra no mar, enche-se de vontades conflitantes; no seu interior há uma luta entre o desejo de ascender e o impulso de se entregar ao abismo.   

Quando Ismália enlouqueceu,   

Pôs-se na torre a sonhar…  

Viu uma lua no Céu,   

Viu outra lua no mar. 

É curioso: no metrô, a minha perspectiva da leitura sempre me leva para cima, porque tento ler o poema rapidamente enquanto subo na escada rolante — gosto de imaginar que o sujeito responsável pela fixação do painel instalou-o ao lado da escada de caso pensado. Mas o que vejo à saída da estação não é a Lua, senão um Sol que se esconde atrás de ameaças de chuva. Isso pode arruinar a noite de réveillon. Dirijo-me à paróquia carregando a intenção de agradecer pela renovação das esperanças; mas, antes de entrar, tenho de me recompor — às vezes, amigos são insensíveis para a gravidade de certos momentos; é claro que não fazem isso por mal. Não fiquei para a Missa.   

Saí da Igreja e me dirigi à padaria, do outro lado da rua, onde descobri que iria de carona. A sutil alegria em saber que não haveria custos de carro de aplicativo, no entanto, não foi longe: longuíssima foi a espera por um amigo retardatário. Ir de carona é ir à mercê do semancol do alheio — a vantagem é que frequentemente vale a pena. Por que a demora? Porque o amigo estava na Missa, mais precisamente: ouvindo a homilia — mais tarde, assenti com sua opinião escandalosa, mas sincera: “Que homilia demorada e chata!”. Estávamos nos últimos suspiros do ano velho, e eu me deixava conduzir para o abismo.   

Enfim, chegamos à casa do anfitrião das nossas alegrias, um sujeito músico da OSESP. Mas eu não sei o que foi aquilo. Dizem que a comunhão dos mesmos gostos é a verdadeira argamassa disto que chamamos “amizade”… Não encontro explicação melhor. Era noite de réveillon. Vou compor, de memória, o panorama da morte do velho: “Uirapuru” e “Boi Bumbá”, de Waldemar Henrique; e “Cantiga de Nossa Senhora”, de Luiz Peixoto e Hekel Tavares. A voz que acompanhava o violoncelo era a de uma soprano. Mas não só, nós fumamos cachimbo: um confrade prestimoso trouxera billiards, bulldogs, standard canadians e alguns tabacos. Toda a conversação foi embalada pela fumaça, uma coisa bonita de se ver — a amiga fotógrafa que o diga.    

Também falamos sobre Literatura, sobre, veja só, Sociologia; arrisquei até conselhos acerca da composição de peças de teatro — coisa que não entendo. Como é lindo o estilo literário de Gilberto Freyre em “Casa Grande & Senzala”! Mas quem consegue colher uma rosa e não soltar timidamente um urro de dor de dedo espetado? O que eu estou dizendo é que “até no riso tem dor o coração, e o fim da alegria é tristeza”. Isso porque, em cada detalhe, em cada comentário despretensioso e engraçado, em cada ação de gentileza, eu via o reflexo de um compromisso não correspondido: era a Lua refletida no mar, no abismo que me atraía.   

E foi uma grande decepção aquilo que vimos no Céu: fogos mixurucas, dois ou três, anunciaram à congregação dos justos o nascimento de 2025. Pudera, pois nosso arraial, cercado pelos prédios paulistanos, era como um vale no qual o som e a luz da vitória chegam como ecos longínquos do campo de batalha… Lua do abismo. Não choveu. Confesso: a pontinha de tristeza advinha do fato de que, sem justificativas convincentes, decidi não cumprir as obrigações morais para com a religião. É claro que havia as tribulações da expectação pelo nascimento do Salvador, coisas que sempre, invariavelmente, viram a vida do cristão de pernas para os ares nas últimas duas semanas de dezembro. Sem justificativas. E minha culpa recrudescia à vista de cada expressão de contentamento, de alegria, de júbilo. Por que eu não fiquei para a Missa?   

Decidi omitir os nomes e mais alguns detalhes daquela ceia de Ano-Novo porque, se não o fizesse, talvez eu me passasse por um deslumbrado idiota. A propósito: não é minha intenção fazer desta crônica um texto hermético, cuja chave de interpretação esteja na mão de meia dúzia de entendedores, testemunhas iguais a mim. É preciso, porém, entender que Ismália pode falar pela boca de todos nós, sejamos heróis, sábios, santos ou depravados. E agora, ela fala na boca do Apóstolo: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço”.  

E faço uma advertência aos cronistas: em festas de réveillon, a quantidade de detalhes relevantes pode ser demasiadamente grande, o que deve exigir do escritor muito mais do que uma tarde de trabalho. Assim, é aconselhável afastar-se dos smartphones, esses sanguessugas de atenção.   

Adiante. A certa altura da festa, fui convidado por um pequeno grupo de amigos a conhecer dois ambientes interessantíssimos da casa, guiado pelo anfitrião: a biblioteca e o escritório — que ficavam separados por um lance de escadas. Fiz uma descoberta nesta noite: no escritório, que também era um estúdio, havia duas harpas, instrumentos que faziam jus ao estereótipo do seu tipo: firulas entalhadas na madeira, tonalidade dourada envelhecida etc. Contrariando os violinos, as harpas são melhores quanto mais nova for a madeira com a qual elas são construídas. Daí que harpas antigas têm a mesma utilidade do calendário do ano passado distribuído, a título de brinde, aos assíduos frequentadores da farmácia: só valem pelas imagens que ilustram a passagem das estações do ano.   

Finda a celebração, e cansado como se tivesse empurrado montanhas, fui convidado para dormir na casa de um casal de amigos; o que não é do meu feitio, mas decidi aceitar, antes por eles do que por mim — é difícil arrancar hobbits de suas tocas. Naturalmente, chegamos à casa de madrugada, quando fiz, acho, a maior descoberta da noite: os amigos tinham como animal de estimação uma cobra — corn snake, eles disseram, um “bichinho inofensivo que só come ratos congelados”. Dormi como uma grande e solitária pedra sobre a relva.   

E na manhã seguinte, o Sol, como um reflexo da eternidade. Era o início do novo ano. Àqueles que ainda não deixaram o cérebro fritar na banha de porco das redes sociais, um fato é patente: nesta vida, um dos agentes da felicidade são os amigos. Alguém devia ter dito isso à melancólica Ismália.   

As asas que Deus lhe deu   

Ruflaram de par em par…  

Sua alma subiu ao Céu,  

Seu corpo desceu ao mar… 

***


2 COMENTÁRIOS

  1. Realmente é um lindo poema e bom mote para sua crônica! Quiçá outras estações exibissem poemas. Fico imaginando os paredões recebendo projeções luminosas de poemas!

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Abertos

Últimos do Autor

CONTO丨Perdão

CONTO丨Parentela

PERFIL丨Graciliano Ramos

PHP Code Snippets Powered By : XYZScripts.com