Baseado na história de São Longuinho
Enquanto xingava e amaldiçoava os soldados bêbados, o velho Capitão Longino em pensamento maldizia também sua própria vida. Devagar iam conduzindo um prisioneiro com seus madeiros, rumo à pena capital. Por causa da Páscoa judaica, deveria ser morto ainda naquele dia, junto com os outros dois que já padeciam no Gólgota. O velho militar ia cansado, indiferente às multidões e à agitação que se dava em torno da crucifixão daquele galileu maluco, que se dizia rei dos judeus. “Que belo fim para um ‘rei’, mas, afinal, não tão incomum. Césares ascendem e caem, e eu mesmo já testemunhei…”
Não pôde terminar a divagação. O prisioneiro havia caído de novo, e um início de tumulto teve de ser contido. Enquanto os soldados dispersavam as pessoas que tentavam amparar o condenado, e um homem no meio da multidão era escolhido para ajudá-lo a carregar o madeiro, Longino fixou sua vista ruim no judeu que ia morrer: estava exausto e machucado demais, sangrando demais, fora torturado além do aceitável até para os piores criminosos. Teve dó dele por um momento, mas logo seguia novamente em direção ao Gólgota, e sua atenção voltava-se toda para si.
Nem sempre vivera naquele povoado árido e quente, tão distante e diverso da sua saudosa Roma. Em seus tempos de glória, ele frequentara os elevados círculos da capital do Império, fora querido e íntimo de mais de um César, era bem relacionado entre os membros da alta Corte e, não obstante sua baixa estatura, galgara postos rapidamente e se destacava entre os Centuriões. Aliás, era a pequenez o seu diferencial. Todos gostavam do Baixinho, como era chamado, o sujeito que literalmente conseguia enxergar tudo o que os demais não viam, a encontrar uma infinidade de objetos perdidos, ágil e alegre, queridinho de tantas jovens e matronas em cujos leitos não raro amanhecia após resgatar-lhes uma joia, uma pulseira, um brinco perdido aqui e acolá, entre festas e jantares. Sua vida era boa, e aquelas delícias pareciam não ter fim.
Mas o tempo passou, ele envelheceu, sua visão degenerou e o Baixinho perdeu, além da graça, a utilidade. Além disso, reviravoltas políticas derrubaram alguns de seus protetores e elevaram outros tantos desafetos, e o velho Centurião agora quase cego e já um tanto deformado por uma nascente corcunda logo tornou-se, além de um traste inútil, alvo de velhos rancores. Sobrou-lhe um desonroso exílio naquela fétida Jerusalém, onde ainda teria que servir sabe-se lá por quanto tempo até poder se aposentar e, quem sabe, retornar à amada Roma. Mas era um sonho que ficava cada vez mais distante, enquanto ele, na mesma medida, tornava-se cada vez mais amargurado, naquela função humilhante de conduzir condenados.
Foi rememorando seus dias de bonança e amaldiçoando seu presente que Longino chegou ao topo do monte, onde o cheiro das feridas dos outros dois crucificados se misturou ao bafo podre e ácido dos soldados bêbados e lhe causou náuseas. Enquanto os carrascos seguiam com a crucifixão sob ordens do oficial superior ele se afastou irritado, sabendo o peso morto que era. Ficou a olhar para a cidade no horizonte distante, tudo borrado e indistinto, a visão piorara ainda mais nos últimos tempos. Logo ele estaria cego, e sabia disso. Deu um suspiro e, olhos fechados, voltou a se perder em suas memórias.
Despertou com os gritos dos dois crucificados que tinham suas pernas quebradas. Enquanto olhava desinteressado para a morte dos dois condenados, o superior deu-lhe um cutucão e uma lança, ordenando que verificasse o estado do terceiro prisioneiro. De má vontade Longino seguiu até a cruz, olhou para o corpo inerte do galileu e, num golpe rápido, perfurou seu peito. Estava morto, sem dúvida. Mas, quando o velho Centurião puxou a lança, jorrou daquele peito sangue e água, com que ele foi inesperadamente banhado.
O velho apavorou-se, confuso. Aquele líquido quente, vivo, espirrara primeiro em seus olhos, aos quais ele levou as mãos automaticamente. Quando os abriu, depois de esfregá-los, sua visão tinha sido restaurada. Ele olhou então para o Crucificado e, para além do cadáver, viu a Verdade. Sentiu então que se renovava nele não só a visão, mas sua alma. Provou dentro de si um vigor inédito, como uma vida nova que naquele momento lhe estivesse sendo concedida. Caiu de joelhos, olhou para o alto e chorou. Depois, fincou no chão a lança, jogou longe a divisa romana e, sob olhares atônitos de alguns colegas, e divertidos de outros, foi embora sem olhar para trás. Adiante, um destino mais grandioso o aguardava.