SANQUIXOTENE DE LA PANÇA | Levando a sério o P.L. do Aborto (1.904/2024)

Paulo Sanchotene
Paulo Sanchotene
Paulo Roberto Tellechea Sanchotene é mestre em Direito pela UFRGS e possui um M.A. em Política pela Catholic University of America. Escreveu e apresentou trabalhos no Brasil e no exterior, sobre os pensamentos de Eric Voegelin, Russell Kirk, e Platão, sobre a história política americana, e sobre direito internacional. É casado e pai de dois filhos. Atualmente, mora no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira entre a civilização e a Argentina, onde administra a estância da família (Santo Antônio da Askatasuna).

É difícil tratar do tema sem apelação à emoção, mas é preciso tentar…


O recente P.L. do Aborto está sendo debatido e é impressionante a dificuldade de encontrar debate civil ou análise desapaixonada sobre o assunto – independentemente da posição de cada um. Não sei se eu consigo, mas ao menos nesta coluna eu tento fazer isso…


Terça-Feira, 24 de Quartubro de 524

[para saber mais sobre o calendário tupiniquim, clica aqui.]

O debate sobre o Projeto de Lei que regula o aborto em caso de estupro tem problemas. Há muita emoção e pouca razão envolvidas na questão. Eu, num primeiro momento, dei boas-vindas ao P.L. 1.904/2024; mas após uma análise mais calma e detalhada, já o acho problemático.

Não se pode julgar qualquer legislação apenas por princípio. É preciso colocar na balança as implicações práticas de sua implementação. Nenhuma lei existe no vácuo. Qualquer norma jurídica existe em relação à realidade concreta e a outras normas que também são parte da ordenação da sociedade. Por melhores que sejam as intenções do legislador, há uma inescapável questão de adequação.

Agora, antes de entrar nesse mérito, deixemos claro o que o projeto é e faz e o que ele não é e não faz.

O P.L. 1.904/2024:

  1. cria uma presunção de viabilidade de vida extra-uterina a partir da 22ª semana de gestação;
  2. usa tal presunção para equiparar a prática do aborto realizada após a 22ª semana de gestação ao homicídio;
  3. a partir daquela presunção, estipula um termo final à tolerância para a prática do aborto em caso de estupro – a qual seguiria autorizada pela lei; e, por fim,
  4. permite aos juízes, nos casos de abortos decorrentes de estupro fora do prazo de tolerância, mitigar ou, até mesmo, isentar de pena a mãe, “se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.” [P.L. 1.904/2024 – art. 2º]

É só isso. O P.L. não regula o estupro, o qual segue sendo crime grave, e tampouco acaba com a autorização ao aborto nesses casos.

Ademais, é perfeitamente possível que uma sociedade entenda que o homicídio seja crime mais grave que o estupro, pelo que as penas para aquele sejam maiores que as desse. Da mesma forma, uma sociedade pode decidir que aborto seja equivalente a homicídio. Não há princípio ferido aqui, se as decisões forem nesse sentido ou em contrário.

Não é aí que estão os reais problemas do projeto.

Agora, não se pode, por exemplo, equiparar o aborto ao homicídio concomitantemente ao reconhecimento do crime de infanticídio. As mudanças fisiológicas do puerpério são responsivas às mudanças fisiológicas da gestação. São quase espelho uma da outra. Só há uma por causa da outra.

¿Por que, então, o infanticídio não é equiparado ao homicídio? É a mesma vítima. É o mesmo agente. A mudança é ser antes ou depois do parto. Como a viabilidade é presumida, se não for feito aborto, mas uma cesareana, ¿então passa a ser infanticídio? Lembrando que, se for, a pena seria menor.

Nesse caso, ¿qual o efeito prático que a lei traria para a efetiva proteção do bem o qual se pretende proteger? ¿Não faria mais sentido equiparar o aborto, ao menos no caso da gestante, ao infanticídio?

O P.L. não levou nada disso em consideração. Os problemas tampouco param por aqui.

Uma gravidez é dependente de duas pessoas. O ser humano gerado é filho de uma mãe e de um pai. Um aborto diz à mãe a ao pai.

É fato que durante a gestação a mãe já é mãe, enquanto o pai fica naquela expectativa de “quando chega a minha vez”. Quem passou por isso, sabe. O pai só começa a ter uma relação direta com o filho após o nascimento. Mas isso não significa que não haja relação antes disso. É indireta, através da mãe, mas existe.

Há uma responsabilidade do pai para com a criança, a qual se dá através do auxílio à gestante – inclusive para que ela evite cair na tentação de abortar. A decisão sobre o aborto não pode recair apenas à mãe. Se o pai não sabe, trata-se de um agravante. Se ele sabe (ou se recusou a saber), ele é cúmplice. Cúmplice, no mínimo. Pode até ser o mentor!

No entanto, o Direito brasileiro é silente quanto a isso. O P.L. não faz o menor esforço para remediar essa falta.

[Claro que, no caso do estupro, a cumplicidade do pai para o aborto deveria ser presumida. Na ausência de consentimento da mulher para a relação sexual, o homem teria abdicado do direito de opinar sobre suas conseqüências. Me parece lógico, ao menos, que deva ser assim.]

O P.L. 1.904/2024 é muito interessante e bem-intencionado. Porém, me parece ter pecado num excesso de simplicidade ao enfrentar tema bastante complexo. Acaba, inclusive, deixando margem em demasia para o Judiciário ajustar com jurisprudência. Deveria enfrentar melhor a tipificação dos atos, tratar com mais detalhes as agravantes e as atenuantes, atentar para a questão do infanticídio, etc.

Não se quer uma lei que sirva apenas para admirá-la em seu esplendor teórico, mas algo que seja efetivo, prático, e justo. Hoje, a minha opinião é que o P.L. do jeito que está não funcionaria.

Peço ajuda a todos que tenham opinião contrária para que consiga perceber o que não estou enxergando.

¡Até a próxima semana!

2 COMENTÁRIOS

  1. A dra. Janaina Pascoal, numa opinião inversa, pensa que seria muito mais efetivo se o PL apenas fizesse a seguinte emenda ao Código Penal: “em caso de gravidez resultante de estupro, o aborto praticado por médico não será punido se feito até as 22 semanas de gestação”. Talvez assim não se levantasse toda essa reação, mas a implementação disso dependeria de regulamentação.
    Penso que o PL 1904 já parte para a equiparação de feticídio a homicídio para frear imediatamente a prática da assistolia fetal, que está se disseminando. Hoje para se obter aborto no SUS não é necessário nenhuma prova de estupro, devido a normas técnicas lenientes e à famosa lei Cavalo de Troia. Creio que a redação do PL está adequada e há uma boa chance de ele ser aprovado; os autores do projeto de 32 iniciais hoje são mais de 50. Contudo demorará alguns meses para ser votado, devido aos recessos e à campanha eleitoral.

  2. Tecnicalidades. Atualmente, em caso de estupro, o aborto:
    -> para o médico: é típico, mas não é ilícito;
    -> para a mãe: é típico e ilícito, mas não é culpável.

    Ambos são inocentes de crime. O PL mantém isso assim até a 21a semana.

    Eu argumento que, para o estuprador, deveria ser típico, ilícito, e culpável. Ele é objetivamente responsável pelo aborto. No texto, isso não está claro.

    Aliás, isso deveria ser assim inclusive para os casos autorizados pela lei. As excludentes não se aplicariam ao estuprador.

    O PL não trata disso todavia.

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