SANQUIXOTENE DE LA PANÇA | “Free: questão de bom senso”

Paulo Sanchotene
Paulo Sanchotene
Paulo Roberto Tellechea Sanchotene é mestre em Direito pela UFRGS e possui um M.A. em Política pela Catholic University of America. Escreveu e apresentou trabalhos no Brasil e no exterior, sobre os pensamentos de Eric Voegelin, Russell Kirk, e Platão, sobre a história política americana, e sobre direito internacional. É casado e pai de dois filhos. Atualmente, mora no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira entre a civilização e a Argentina, onde administra a estância da família (Santo Antônio da Askatasuna).

O título da coluna é o eslogã de uma antiga marca de cigarros; do tempo em que cigarros faziam propaganda.


Nesta semana, inspirado em postagem de uma pessoa a quem muito estimo e respeito, volto a falar de um tipo de ignorância e ingenuidade que afeta principalmente os mais letrados e mais inteligentes de uma sociedade. O exemplo joga luzes sobre o atual momento de crise que experimentamos e por onde encontraríamos a saída.


Terça-Feira, 10 de Quintubro de 525

[para saber mais sobre o calendário tupiniquim, clica aqui.]

Na semana passada, eu escrevera: “Não há nada de novo no fronte. Nunca há. Isso se deve à própria natureza humana. As questões fundamentais de hoje são as mesmas desde o começo da humanidade. Ficamos apenas remoendo-as continua e constantemente…” Ainda fiz menção a “… um tipo peculiar de ingenuidade. Afeta os mais bem educados, os mais inteligentes, e/ou os com poder.

Quem postou a imagem que ilustra esta coluna foi a mãe de um colega da pós-graduação. Sou fã dela, a senhora Lou Ann Rieley. Criou um bando de filhos (basta ver a foto de capa do perfil dela no Facebook) e ainda ajudou a educar mais uma penca de crianças, tudo isso enquanto ainda cuidava da pequena fazenda da família no interior dos Estados Unidos. Dentre aqueles que tive a oportunidade de conhecer, todos se mostraram ser excelentes pessoas – a começar por ela, a mãe.

A postagem dela tem a ver com ambos os trechos acima. A imagem diz o seguinte – e os números sequer me parecem corretos: “21% dos americanos são totalmente analfabetos. 54% têm uma capacidade de leitura inferior ao nível do sétimo ano. ¿Adivinha em quem essas pessoas votaram?” Abaixo do texto aparece uma imagem do Trump usando um boné. No quepe, lê-se: “Eu amo os que têm baixa escolaridade.

Diz Lou Ann que ela vira a imagem numa postagem de outrem, opositor ao Trump, e se sentiu obrigada a responder. Afinal, segundo ela, a educação nos Estados Unidos há décadas seria dominada por democratas, progressistas, e esquerdistas – tanto no ensino fundamental, no ensino médio, e nas universidades quanto nos sindicatos e nas burocracias estaduais e federal. Um amigo dela ainda acrescentou em comentário: “O idiota que fez isso tem baixo Q.I.

Os dois pontos são interessantes e merecem atenção. Apesar de se tratar de uma postagem sobre os Estados Unidos, a realidade no Brasil é bastante semelhante.

A postagem e a resposta da Lou Ann têm a ver com a facilidade dos mais bem-educados em perder contato com o bom senso [senso comum; common sense]. É desnecessário ir além da imagem referida para encontrar um exemplo disso. A pessoa simplesmente se tornou incapaz de perceber a hialina contradição entre sua autopercepção como “democrata” e seu desprezo às pessoas comuns [ralé; demos].

Ora, como já disse numa entrevista com a Bruna feita aos 05 de julho de 2020 [Youtube: “O Império Contra-Ataca: a reação do Consenso de 1988 contra a Nova Era”], o povo é o fiel depositário do senso comum de uma sociedade. (A frase até pode ser minha, não sei, mas o conceito não é original – eu o tirei de Chesterton.) Por sua vez, as elites – devido a sua maior educação – são responsáveis por tomar tal senso comum, refiná-lo e elevá-lo.

Sociedades sadias têm essa relação como uma via de mão-dupla. As elites devolvem o senso comum aprimorado para o resto da comunidade. O povo, por sua vez, fará disso a matéria-prima para o recomeço do processo.

Sociedades com grande mobilidade social ainda se beneficiam do fluxo de senso comum provido por aqueles que, vindo das camadas mais baixas da sociedade, assumem lugar no topo da pirâmide. Esses também ajudam na tarefa de repassar o resultado da ação das elites de volta para a base. ¡A liberdade é também uma questão de bom senso!

Apesar de a situação vir se deteriorando continuamente, os Estados Unidos da Lou Ann ainda são o país que melhor faz isso no Ocidente. Os países da Europa Ocidental têm sido terríveis nisso há muito tempo. Infelizmente, o nosso histórico, aqui no Extremo-Ocidente, não é lá muito melhor; se de fato for melhor.

Não creio que quem tenha feito aquela imagem seja alguém de baixo Q.I., como afirmou o tal amigo da Lou Ann. O “quoficiente de inteligência” não tem nada que ver com algo desse gênero. Pessoas com alto Q.I. podem ter baixo bom senso (ou seja, podem ser politicamente idiotas). Isso é mais comum do que gostaríamos de admitir, inclusive. Aliás, nossa obsessão com Q.I., exemplificada no comentário referido, é sintoma dum problema real que enfrentamos.

Q.I. mede nossas abilidades lógico-matamáticas. Noutras palavras, esse mede nossa capacidade de pensar como uma máquina. No último par de séculos, pelo menos, isso tem sido nosso paradigma para definirmos quem são os melhores entre nós. Agora, todavia, nos deparamos com um dilema.

Recentemente, tornou-se corriqueiro ver pessoas preocupadas com os efeitos da evolução da Inteligência Artificial. Estamos percebendo que as máquinas são superiores a nós em seres máquinas. (¡Supreendente!) Tememos que isso tornará a nós, homens, obsoletos.

É bobagem. O fato é que, e isso pode soar estranho a muitos, não somos máquinas. Somos seres humanos. Simplesmente, por uma quantidade relevante de tempo, vimos negligenciando nossa humanidade. Em determinado momento, parece termos decidido que essa não era do nosso agradado e buscamos escondê-la de nós mesmos.

Cansamos de viver em dúvida; de ver-nos forçados a ceder em nome de acordos temporários. Passamos a almejar certezas. Nos agarramos à matemática e às ciências por pela capacidade dessas em nos fornecê-las. Prendemos nossa atenção ao cosmos, à natureza, ao mundo físico na esperança de que fossem suficientes para entregar-nos todas as respostas que precisávamos.

Não eram suficientes. Jamais serão capazes de provê-las. A Era da Ciência mostrou-se construída sobre uma falsa premissa. O projeto falhou. Contudo, ainda não estamos prontos para abandoná-lo. Seguiremos nesta era por um bom tempo. Apenas estamos testemunhando o começo de seu declínio.

As pessoas com alto Q.I., os sacerdotes desta era, relutam a admitir, mas, no fundo, já sabem ser o caso. Eles têm dificuldade de esconder os sinais de desespero; sentem o atual momento como se fosse apocalípitco. Há poucos anos, era como se estivessem diante dos portões do Éden. Eles não fazem ideia do que poderia ter saído errado. Muitos crêem que a solução é mudar-se para Marte. Esse é o nível da ignorância deles.

Ao fim e ao cabo, a saída para nós, hoje, é a mesma encontrada por aqueles que passaram por situação semelhante na história: reencontrar a humanidade esquecida. Repito o que disse na minha primeira coluna nesta espaço aos 4 de julho de 2022: “como no caso das máscaras de oxigênio de avião, é preciso salvar-se primeiro antes de ajudar os outros.” A saída não está em Marte, mas em cada um de nós. O resto se resolve a partir daí.

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Abertos

Últimos do Autor

PHP Code Snippets Powered By : XYZScripts.com