No turbulento cenário jurídico brasileiro, a qual julgamento ocorrido nesse século podemos atribuir o título de “julgamento do século”? Faremos algumas considerações esperando responder essa pergunta. Que o leitor possa tomar sua própria decisão.
Muitos atribuem ao julgamento do Mensalão esse título, pela relevância histórica dos fatos e personagens envolvidos. Outros, pela mesma razão, atribuem ao julgamento de Lula na Lava-jato. Contrariando as expectativas, atribuo esse título ao julgamento de aceitação da denúncia de golpe de Estado ao ex-presidente Jair Bolsonaro e dezenas de outros acusados. Por quê?
Os dois primeiros citados, apesar da importância histórica dos casos e das consequências que decorreram deles, nada mais foram que julgamentos dentro de certa normalidade jurídica e, apesar de alguns deslizes, levados a cabo através de procedimentos e forma delineados no ordenamento processual penal brasileiro. Excetuando a importância dos assuntos e dos réus, nada tiveram de excepcional no mundo do direito.
O mesmo não podemos dizer do julgamento da aceitação da denúncia contra Jair Bolsonaro, esse sim foi excepcional no termo exato da palavra. Já vimos muitas coisas estranhas acontecendo em nossa Justiça nos últimos anos. Decisões arbitrárias, condenações políticas, investigações que burlaram o arcabouço legal e muitas outras ilegalidades que anulariam qualquer ato judicial pretérito ao período que vivemos nos últimos dois anos. Esse julgamento foi além.
Não há notícia, na história jurídica brasileira, de um julgamento que tenha ignorado absolutamente tudo que é previsto em nossa legislação processual. Tudo nele poderia ser considerado nulo em qualquer democracia do mundo. Primeiro é a questão do Foro de julgamento, pois foi necessária uma decisão do Supremo alterando o entendimento anterior, visto que nenhum dos acusados teria o foro por prerrogativa de função, conhecido “foro privilegiado”. O Supremo colocou qualquer um, a seu bel prazer, sob sua jurisdição.
Depois foi o atropelo do princípio da ampla defesa. Começando pelo prazo de quinze dias para apresentação de defesa prévia dos réus. Na denúncia, há centenas de milhares de paginas e arquivos para serem analisados e, com prazo tão curto, fica inviabilizada uma análise rigorosa de tudo. Há diversos precedentes que autorizariam um prazo maior, além disso, em unanimidade, as defesas demonstraram a falta de acesso sobre a integralidade das provas coletadas contra os acusados. Isso é um princípio básico do Estado de Direito.
Quando se fala em amplo acesso, não se trata de acesso apenas das provas juntadas pela acusação, mas de todas as provas colhidas, principalmente aquelas que poderiam contrariar a acusação. Significa disponibilizar todos os meios para que a defesa trabalhe. Todos os pedidos nesse sentido foram negados e rebatidos pelo relator do caso.
Vejamos agora o papel do Ministro relator, pois foi na sua atuação que vemos como as regras processuais foram totalmente ignoradas. Em um julgamento para analisar apenas o recebimento de uma denúncia, ou não, o que é julgado são apenas as alegações da acusação e defesa sobre a aptidão ou inépcia da denúncia. Nunca debate-se o mérito desta. Mas o que vimos foi um verdadeiro show de criatividade e assunção do relator ao papel de acusador.
Em um longo voto, o relator do caso não apenas rebateu todas as alegações das defesas, ele desceu a minúcias que esbarraram fortemente no mérito da acusação, e fez mais, em um movimento chocante, exibiu um vídeo selecionado das manifestações do dia oito de janeiro de 2023, vídeo que não constava na denúncia e nem foi apresentado antes às defesas. Em direito esse expediente é conhecido como “prova surpresa” e que não existe em nosso sistema legal. E mesmo onde é aceito, quem faz uso dele é a defesa ou a acusação, nunca o juiz do caso.
Depois de tamanho absurdo, do qual não se tem conhecimento em nenhum dos países democráticos, os votos dos outros Ministros, todos resvalando no mérito da acusação, podem até serem considerados erros brandos, apesar de também não respeitarem o devido processo legal.
Diante dessa singela análise, em minha modesta análise, esse julgamento leva facilmente o título de “julgamento do século”, menos pela importância do caso julgado ou dos acusados, mas por evidenciar abertamente o quando a nossa Justiça deteriorou-se, transformando-se de forma tão clara em uma Justiça de vontades de Homens, não mais de Leis. Uma triste página de nossa história.
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