Baseado em histórias reais
Ele nem se lembrava de quando não havia sido comunista. Criado numa família de “livres pensadores”, a cantilena vermelha fazia parte de seu imaginário já desde a infância. O contrapeso a esse veneno estava no batismo, exigido por um avô, e nas orações e lições de catecismo ensinadas por uma outra avó – que ele escutava de má vontade, mas que aprendera. Esse antídoto permaneceu amortecido, hibernando em sua alma, por anos. Mas estava lá.
Aos 9 anos ele exultou ao votar pela primeira vez em um comunista de estimação em uma eleição simulada na escolinha. Aos 12, estava nas ruas, com os familiares, panfletando para eleger o primeiro prefeito comunista da cidade. Adolescência afora, militou com energia e ódio para eleger outros tantos prefeitos, vereadores, deputados e governadores das mais variadas siglas, mas todos amigos do Partidão. Nessa época, só não logrou eleger seu candidato à Presidência, aquele mesmo que amava desde os 9 aninhos.
Levou a militância para a juventude e a vida adulta, com muito mais gana e mais ódio. Aliás, foi nesse período que profissionalizou seu ódio. Militava para viver e vivia para militar. Esteve à frente de lideranças estudantis, depois de um sindicato. Filiou-se ao Partido, vivia pra o Partido. Trabalhou pra tantos e tantos políticos, das mais diversas formas, honestas ou não, sempre focado no bem maior da Revolução. Nessa época, também, degenerou-se tanto quanto podia. Tornou-se boêmio e mulherengo, sempre se gabando das suas conquistas.
Chegou aos 35 naquela vida de Revolução, bebedeira e mulheres. Cansado, é verdade, e sempre ressentido, insatisfeito, revoltado nem sabia mais com o quê. A verdade é que havia algum tempo que não via mais em que se fiar. Chegou mesmo a pensar em um suicídio poético umas duas vezes. Por aquele tempo começou a pensar muito nos avós, principalmente quando passava em frente a alguma igreja. Pensava neles, relembrava diversos momentos felizes da infância e da adolescência, e sentia culpa. Sentia seu peito apresso, pesado, procurava um lugar para chorar escondido. Mas logo amortecia esse sentimento com mais bebida, mais mulheres, mais inutilidades que comprava e viagens solitárias que fazia.
Um dia, em uma dessas viagens, resolveu visitar uma cidade histórica, que se tornou uma tortura para ele. Cada uma das tantas igrejas barrocas que visitava trazia-lhe à mente a vó e o vô, as lembranças todas, e o peito pesava. E foi com peito pesado e triste que, em um fim de tarde, subindo uma ladeira de paralelepípedos, deparou-se com um incêndio em um daqueles templos. O fogo consumia a estrutura com uma voracidade que o corpo de bombeiros não conseguia conter. E no meio daquelas chamas ele viu uma enorme cruz que, se desfazendo no fogo, caiu e se quebrou no solo, chamuscada, preta. E olhando para aquele fogo todo, e o negrume da fumaça, olhou para dentro de si e viu sua alma. Lembrou das lições da avó na infância, e também do rosto triste do avô, tantos anos atrás, em um leito de hospital, a clamar por sua conversão. Então caiu de joelhos e chorou de soluçar, na frente de todos, um espetáculo à parte a dividir a atenção dos circundantes que assistiam ao incêndio.
Levantou-se rapidamente e correu ao hotel, evitando olhar as pessoas, envergonhado. Não dormiu aquela noite, que passou rezando as orações que a avó havia ensinado. Na manhã seguinte, foi procurar o um padre. Havia muito o que conversar. Havia muito o que confessar.