Dedicado a todos os Anjos da Guarda do mundo
O avô entra pisando leve, devagarinho, mesmo sabendo que o menino está em coma profundo. Na cama, o neto com a cabeça raspada, um talho da testa até quase o alto da cabeça, parecendo uma flor – pontos trabalhados minuciosamente –, com sondas aqui e ali, soro acolá, o corpo todo escoriado. Em gesto automático, o velho faz menção de pôr a mão em sua cabeça e fazer o cafuné a que o garoto está acostumado há tantos anos, mas detém-se ao olhar a flor vermelha e preta ali costurada. Pousa a mão no ombro no menino, faz uma prece silenciosa e senta na cadeira ao lado. Tira o Rosário do bolso e começa o oferecimento.
O Anjo do velho e o do menino, antigos conhecidos, cumprimentam-se, e o do avô pergunta:
– Muito grave?
– Bastante.
– Cansado?
– E como!
– Esse menino sempre te deu trabalho, mas isso… O que houve?
– Distração – o Anjo do menino suspira – a distração de sempre. Ele estava indo da escola para casa, foi cruzar aquele avenida movimentada, daquele jeito dele, com os pensamentos lá longe, sem olhar para os lados, desligado do mundo. Foi atingido por um carro que vinha a toda, bateu a testa no para-brisas, e depois na calçada, bem o mesmo lugar, em cheio. Não pude fazer nada…
– Nem sempre a gente pode.
– Pois é. Depois, foi aquela correria, a família desesperada, choro e grito pra todo lado, a cirurgia, a quase morte, e tensão toda, horas difíceis, muito difíceis. E o pior é que quase ninguém lembrou de rezar.
– Quase, né? – O Anjo do avô apontando o velho concentrado nas contas do Rosário.
– Só ele e a outra avó, acredita? Uma tristeza.
– Mas, então… – o outro Anjo vai perguntar, mas se interrompe.
– Quer saber se ele vai sobreviver? Vai, vai sim. Mas que menino, meu amigo, que menino. Como cansa!
– Tem um bom intercessor – o Anjo do avô sorri ainda apontado o velho.
– O melhor! – O do neto sorri em agradecimento.
Nisso, o menino abre os olhos, pisca, olha em volta zonzo, confuso. Vê o avô ali do lado, e sua voz, embargada, meio pastosa, monocórdica, interrompe o Rosário do velho e a conversa dos Anjos:
– Vô?