Baseado em um episódio da vida de São Martinho de Tours
Martinho seguia calado rumo a Amiens, pensando sobre as coisas de Deus. A vida de soldado não lhe permitia muitos momentos como aquele, assim como deixava irregular e falho seu catecismo, o que o angustiava. O jovem queria ser batizado o quanto antes, mas as marchas, os treinos e as batalhas sempre acabavam por fazê-lo adiar o grande momento. Ainda assim, ele se esforçava para estudar suas esporádicas lições sagradas entre uma viagem e outra. Na estrada, livrava-se dos ruídos do mundo e concentrava-se apenas em Nosso Senhor, vencendo ferrenhas batalhas em sua consciência.
Naquela manhã, batalhava contra o ressentimento que sentia do pai. Não fosse o velho oficial pagão e turrão que o alistara no exército contra sua vontade, Martinho àquela altura já seria noviço em algum mosteiro, e ainda que já houvesse aceitado a carreira militar, perdoar o velho revelava-se o desafio de sua vida. Esforçava-se, orava, meditava, e perdoava. Mas, dali a poucos dias, ou mesmo no dia seguinte, o rancor voltava a invadir seu coração.
Ia perdido naquelas lutas, já esquecido das lições do catecismo, quando se viu nas portas da cidade, onde se deparou com um mendigo tão sofrido que lhe causou piedade instantânea. Remexeu os bolsos e as roupas várias vezes, atrás de uma moeda que fosse, mas não achou nada. Seu coração apertou. Sem outros recursos, e vendo que o pobre tremia de frio, sacou sua espada, rasgou sua capa em dois pedaços, deu ao pedinte a parte maior, e entrou em Amiens.
Naquela noite, apesar da longa viagem, sentia-se leve, revigorado. Fez suas orações e dormiu logo em seguida, sem dificuldades. Pouco depois, levantou ouvindo as melodias de um coro angelical que o encantou. Olhou para os lados e não viu o acampamento, a escuridão era total. Então, uma luz intensa se fez diante dele, e aos poucos pôde distinguir a figura de Cristo revelando-se à sua frente. As vestes d’Ele eram brancas e luminosas, e foram clareando todo o ambiente, que não era o acampamento, mas um jardim com cores que Martinho nunca havia visto. Ao redor d’Ele, o jovem viu os Anjos que entoavam aquela melodia que tanto lhe agradava. Então, Martinho também notou que, sobre Suas vestes brancas, Jesus usava a mesma meia capa que naquela manhã ele havia doado ao mendigo. Sorrindo e a apontar para o rapaz, o Senhor falou a Seus Anjos:
– Eis Martinho, que, sendo ainda catecúmeno, cobriu-me com seu manto!
Toda a cena passou em segundos. Quando Martinho despertou e olhou em volta, já amanhecia, e ele estava no acampamento. A melodia angelical ainda estava em sua cabeça – na verdade, ela nunca mais a esqueceria. Levantou de um salto, já com todo um roteiro em sua mente. Ainda naquela manhã viajaria a Roma para pedir ao imperador em pessoa sua dispensa. Depois, o batismo, e então o mosteiro. Quanto a seu pai, estava definitivamente perdoado.