CRÔNICA丨Com quantas palavras se faz um fascista

Bruna Torlay
Bruna Torlayhttp://brunatorlay.com.br
Estudiosa de filosofia e escritora, frequenta menos o noticiário que as obras de Platão.

Ontem (Domingo, 27/07) estava feliz, tinha acabado de receber 200 reais inesperados de um investimento que havia esquecido que tinha feito. Não, não era o jogo do bicho. Enfim, tudo estava dando certo no dia, minha esposa estava feliz com um sapato novo, meus filhos estavam ambos distraídos e contentes, um no videogame e outro com a companhia de um primo. Então resolvi ir ao mercado, pois se tem algo que nos acompanha na saúde e na doença, na tristeza e na felicidade é a cerveja.

Peguei, gloriosamente, um fardo de Stella Gold, pois dizia a embalagem haver menos glúten, e fui logo para o caixa, afinal, logo mais meu tricolor paulista iria jogar. Na fila do mercado, enorme devido a uma falha de conexão no sistema dos caixas, fiquei logo atrás de um senhor honrado que trajava orgulhosamente a camisa do Cruzeiro. Ele devia ter uns 40 anos e via de forma concentrada, e sem fone, no Instagram, um vídeo do Nikolas Ferreira. Juro “pro ceis”, não sei o porquê, mas eu disse ao rapaz: “para bem, ou para o mal, temos que concordar, esse garoto é um fenômeno da comunicação da direita”. Eu supus, caros leitores, sem nenhuma evidência para além do fato de o homem estar assistindo ao Nikolas, que ele era de direita; e que por ser um domingo tranquilo em Minas Gerais, de meio de tarde, ele estaria espirituoso para uma prosa saudável sobre comunicação, política e demais desgraças que acompanha essas parceiras.

Com olhos visivelmente afetados, disse: “quase todo fascista é bom de comunicação”. Dei uma risada acanhada, e me calei. Vi que ele ficou notoriamente incomodado com o meu silêncio. Afinal, como a história e a teologia nos ensinam, do diabo à esposa, o silêncio de um homem corrói mais a alma desses seres do que um exército em marcha ou o melhor argumento que possa existir numa disputa. Depois de uns bons 30 segundos de silêncio, ele emendou: “O senhor é bolsonarista, é claro”. Eu levantei os olhos do sonho de valsa que me tentava no corredor carregado de doces ao meu lado, e disse: “sou são-paulino, casado, católico e, de vez em quando, gostoso. E só, meu amigo”. Não sei exatamente por qual motivo, sempre recorro ao humor em situações de cansaço mental e pressão psicológica, já perdi amores e empregos por isso, mas está em meu ser, fazer o quê.

Meus caros. Aquele senhor se enfureceu de tal forma com a minha resposta que, se não fosse seus braços carregados com pão, presunto, queijo e alguns biscoitos, acho que ele teria tentado me agarrar pelo pescoço. “Não adianta disfarçar, conheço bem seu tipo”, disse com o pão de forma se tornando uma hélice de helicóptero. “Meu amigo, hoje é domingo. Estou cagando para sua opinião política. Se Lula e Bolsonaro tivessem aqui, eu pediria licença a eles para pegar minha cerveja e iria embora. Caguei para sua opinião política e para o que o senhor pensa de mim…”, disse a ele. Não adiantou, ele estava visivelmente exaltado, e não parecia ser álcool, era pior, era ideologia. Ele então derramou em todos da fila uma bílis impressionante, mesclando sua fúria vocal com termos típicos de sua gangue “democracia”, “empatia”, “fascismo”, “nazismo” e por aí vai. Claramente faltava-lhe o coito e a sensatez comunitária, e sequer falarei do óbvio espírito de liberdade que permeia a capacidade básica de se conviver com pessoas que não concordam com sua catequese política.

O segurança do estabelecimento ficou, a certa distância, me olhando com um sorriso de lado, notando minha cara de tédio, levantava os dois braços como que dizendo “que maluco, ignore-o”. Eu balancei a cabeça em concordância. “Um fascista não consegue esconder o que é nem mesmo na fila do mercado”, dizia o cruzeirense enquanto investigava com sinceridade se teria sido o fato arrogante de, às vezes, me achar “gostoso” que o deixou num ataque de pelanca. “O fascismo do país se vê em pessoas que admiram esse fascistinha do Nikolas; você pode não ver, mas se alinha ao fascismo de Bolsonaro”, chegou a enxugar a testa nesse instante. “O fascismo fede”, disse ele quando finalmente a caixa o chamou. E com esse haduken final de anti-fascismo soviético ‒ pelo que contei ele disse “fascismo” e seus derivados 6 vezes em menos de 3 minutos ‒ foi ele, marchando como um potro que acabou de cagar enquanto rodava o rabo; uma senhora que estava atrás de mim, tocou meu ombro e cochichou, “também gosto do Nikolas”, dando uma risadinha cúmplice. Pois bem, pelo o que o saldo indicava, naquela tarde havia invariavelmente me tornado Nikolista.

Era só eu não ter falado com ninguém, ter guardado o silêncio desde o início. Falar de política, no dia do Senhor, atrai gente doida. Por fim, aprendi com quantas palavras se faz um fascista: basta não concordar com os histéricos, basta elogiar errado, defender errado, não dar uma lambiscada na bola certa, falar errado, pensar errado… e pronto, automaticamente pegamos na mão de Mussolini e começamos a correr como dois apaixonados num campo de centeio.

A notícia boa, no entanto, foi que meu tricolor ganhou e o Cruzeiro perdeu.

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