SANQUIXOTENE DE LA PANÇA | Sobre Democratas e Extremistas: uma carta

Paulo Sanchotene
Paulo Sanchotene
Paulo Roberto Tellechea Sanchotene é mestre em Direito pela UFRGS e possui um M.A. em Política pela Catholic University of America. Escreveu e apresentou trabalhos no Brasil e no exterior, sobre os pensamentos de Eric Voegelin, Russell Kirk, e Platão, sobre a história política americana, e sobre direito internacional. É casado e pai de dois filhos. Atualmente, mora no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira entre a civilização e a Argentina, onde administra a estância da família (Santo Antônio da Askatasuna).

Retomo hoje um assunto de imensa relevância considerando a situação política que o Brasil atualmente atravessa. Comecei na semana passada, quando relatei uma situação que ocorrera comigo recentemente. Um amigo de longa data, pró-regime, me procurou para retornarmos a uma conversa que, ao menos eu pensara, mantemos de maneira inconsistente ao longo dos anos.

Eu fui checar o que já tínhamos falado [gosto tanto dessas novas conversas que sempre as registro] e acabei me surpreendendo. Por alguma razão que desconheço, nosso papo é mantido de forma estranhamente consistente. Começamos a dialogar em 2016 (linque). Depois, conversamos em 2019 (linque), em 2022 (linque), e, agora, em 2025. ¡É um diálogo trienal!

Para entender este artigo, é desnecessário olhar aqueles diálogos anteriores. Pode-se fazê-lo, claro, mas, antes de seguir neste texto, apenas recomendo que se leia a coluna da semana passada: “Falando para o Outro Lado” (linque). Nessa, eu tratei do que creio ser absolutamente fundamental – ainda que sejam questões preliminares.

Sem falar desses temas primeiro, não poderia eu enfrentar os pontos e perguntas levantados pelo meu amigo. Da mesma forma, sem ler aquilo que tratei primeiro, acredito não se poder entender plenamente o que eu digo abaixo. Portanto, caso ainda não tenhas feito isso, vai lá, lê a coluna, e só então volta aqui.

Agora que retornaste, querido leitor, seguimos. Peço vênia para transcrever novamente a mensagem que ele me enviou, já que farei referências diretas a essa.


Meu querido amigo,

Mudei de pensamento, em algumas poucas coisas daquele nosso debate que você me reencaminhou. Fui provado certo quanto a Bolsonaro. A direita democrática, hoje, está ao redor de Lula (Simone Tebet à frente). Mas dirás que essa é a direita permitida e que portanto não te atende. Não te atende porque fisiologista? Porque pouco ideológica? Por quê?

Não foi Jair Bolsonaro quem criou a Direita, mas quem surfou a onda de Direita. Já havia uma Direita. Ela só perdeu o medo de se chamar pelo nome a partir de 2018. A Arena virou PDS, que virou PP, que virou Progressistas, que agora é União Progressista. A Direita [conservadora nos costumes e por redução na rede de proteção social] existe num contínuo desde antes de 1988 e até hoje. Pode ser que, por não querer o tudo-ou-nada da disputa do Executivo, tenha se entrincheirado no Legislativo até 2018.

Jair Bolsonaro consumiu a Direita. Nem Dória sobrou. Ninguém. Eduardo Leite é direita democrática. Veja onde ele vai parar. [Não me diga que Tarcísio é Direita democrática porque não é. É um extremista “diet”, mas é um extremista.] E agora o Jair vai se valer dessa Direita consumida para conseguir a mesma impunidade que busca desde quando ameaçou por bombas na adutora do Guandu. A Direita será massa de manobra de um bandido condenado e de sua família parasita e cleptoclática. Será, não. É pelo menos desde 2022, quando acampou na frente de quartéis.

Eu parto do quadro montado e suponho alternância dentro dele. Você quer sair do quadro, quebrar o quadro. O que é tão odioso no quadro que justifica sua quebra? O que é tão irreconciliável pra você entre o seu ideal e o quadro posto?

Me responda isso quando possível, porque estou apreensivo. “Prove me wrong”, em homenagem ao falecido. Mas sem armas.

Belo Horizonte, 18 de setembro de 2025.


Eu tinha enormes dúvidas de como fazer para lidar com essas questões. Ainda as tenho [são inevitáveis], mas ao menos tomei uma decisão tanto quanto à forma quanto ao conteúdo. Já que transformara as mensagens dele numa carta, resolvi responder-lhe de maneira similar. Portanto, em vez de termos uma seqüência de falas mais ou menos curtas e diretas como nas conversas publicadas anteriormente, desta feita, teremos um diálogo epistolar.

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Caro amigo,

Como nossa conversa vem sendo pública desde o princípio, resolvi responder-te através de uma carta aberta.

Eu sei que já te agradeci pelas questões que me enviaste, mas, antes de respondê-las, gostaria de fazer isso de novo. Como de costume, são bastante desafiadoras. Tenho aprendido algo novo a cada vez que penso nelas. O maior aprendizado, admito, é sobre o tanto que não sei como tas responder.

Espero que já tenhas tido a oportunidade de ler meus apontamentos preliminares. São referentes às primeiras lições das quais me dei conta. Imagino que sejam, em si, fontes de novos questionamentos. Quiçá, antes eu devesse esperar pelos teus comentários sobre aqueles pontos. Contudo, não pude ficar alheio ao que me disseste ao final: “Me responda isso quando possível, porque estou apreensivo. ‘Prove me wrong’”.

Sinceramente, não faço idéia de quais seriam as condições necessárias para que seja possível te responder de maneira satisfatória. Tampouco estou certo no que exatamente eu deveria te provar estares equivocado. Contudo, não posso deixar de atender teu pedido e te ajudar a enfrentar as causas da tua apreensão.

Para tanto, me pedes para não usar armas. Te peço perdão, mas não posso evitar. As minhas armas sempre foram as palavras, e eu não tenho como te responder sem usá-las.

Na tua mensagem, há um tom sadio de dúvida perceptível para quem te conhece e para quem lê-la de boa-fé. São pouquíssimas as pessoas realmente dispostas a se perguntarem, diante da nossa situação política, exatamente “em que raios está o problema”. Só por isso, afirmo, já és digno de louvor. Eu acho que todos deveríamos nos fazer tal pergunta.

Se não me atenho a tuas afirmações e descrições é por entender as questões suscitadas serem mais importantes. “Quando Pedro fala de Paulo, diz mais sobre Pedro do que sobre Paulo.” Ficarmos debatendo nossas perspectivas sobre os temas levantados pode ser interessante, pois revelaria coisas sobre nós mesmos. Porém, fazê-lo agora, creio, seria contraproducente. Eu já serei obrigado a apresentar meu ponto-de-vista nas respostas às tuas perguntas. Não quero me alongar mais nos tirando do foco principal.

Disseste “você quer sair do quadro; quebrar o quadro”. De certa forma, essa afirmação já responde ao teu primeiro questionamento. ¿Por que a tal “Direita Permitida” não me atende? Ora, não me atende justamente por defender “o quadro”. Isso pouco tem a ver com fisiologismo ou ideologia, mas com o fato de eu não poder “sair do quadro” ainda que eu o quisesse.

Para sair dalgo, é mister que se esteja dentro primeiro. Eu sempre estive do lado de fora. Eu não quero sair. Se parece que quero “quebrar o quadro”, como dito, é porque eu quero entrar. Contudo, atualmente, eu sou proibido de fazer isso por não compactuar com diversas premissas ideológicas do regime.

Queres saber de mim “o que é tão odioso no quadro” e “o que é tão irreconciliável pra você entre o seu ideal e o quadro posto”. São perguntas excelentes. Merecem que eu faça um esforço para respondê-las, apesar de eu desconfiar que não conseguirei me fazer entender. Há diversos pressupostos fortemente impregnados no imaginário das pessoas que dificultam a compreensão sobre aquilo que falo.

Primeiro, por favor, não tomes isso como uma acusação contra ti, em particular, ou contra os defensores do regime, em geral. Somos uma única sociedade. É uma questão que afeta a todos nós; inclusive a mim. Há pessoas contrárias ao regime que também padecem do mesmo problema. Essas se opõem somente aos efeitos do regime e não, aos seus defeitos. Elas até podem estar comigo, mas eu não estou com elas.

Segundo, é necessário que fique claro um ponto: eu não tenho ideal algum. Tenho opiniões sobre problemas políticos e eventuais soluções; nada mais. A presunção de que, ao falar de política, eu estaria partindo de ideais, em si, já é deveras problemática. Política é totalmente incompatível com idealizações.

Terceiro, ideologia é algo muito diferente de opinião política ou posição política. Disputa entre ideologias é uma deturpação da política. Política depende de conversa, diálogo, para se desenvolver. Porém, onde há ideologia, não existe possibilidade real de conversa, diálogo. Esses tornam-se meramente jogo-de-fachada.

Ideologias pressupõem um fim para a política; o término de qualquer discussão sobre qualquer questão política. No entanto, a finalidade da política é ela mesma. Se o homem é de fato um ‘animal político’, o fim da política implica o fim do homem. Ideologias, portanto, por serem antipolíticas, essas são antinaturais e desumanizantes.

Há uma contradição insolúvel entre o que a Carta Magna de 1988 afirma ser e aquilo que de fato é. O documento pressupõe-se democrático, porém é antipolítico. É impossível ser concomitantemente ambas as coisas. Essas duas características apenas coexistem ideologicamente.

A premissa é que a mera realização de eleições periódicas para os poderes legislativo e executivo seja suficiente para garantir a natureza democrática do regime. No entanto, a Política deveria estar sempre sujeita à autoridade do Direito e da Ciência – no caso, do poder Judiciário e do corpo técnico da Administração Pública – e de acordo com o ideal de Brasil imaginado pelos constituintes.

A conseqüência disso é que as questões verdadeiramente relevantes estão fora de discussão. Os “democratas” já concluíram sobre essas. Tais conclusões, aliás, são tomadas como pressupostos para definir e reconhecer quem seja “democrata”.

Quem concordar com o ideal de Brasil promovido pela Constituição e defendido pelos juízes e pelos burocratas, essa pessoa é “democrata”. Por outro lado, independentemente dos motivos que possa ter, qualquer um que discorde desse, na linguagem hodierna, é um “extremista” e, portanto, está fora da comunidade política. É alguém indigno de ter suas opiniões levadas em consideração.

Um ideal político toma-se necessariamente como a realização do Bem Comum. Há uma equiparação entre o regime representante de tal ideal e o Bem Comum. Logo, quem se coloca contra tal ideal e, conseqüentemente, contra o regime, só pode representar um mal. Sendo assim, ¿como poderiam os “democratas” aceitar incluir essas pessoas tão nocivas dentro da comunidade? A conclusão é lógica. O erro está nas premissas.

Como resultado dessas, atualmente é ínfimo o espaço para discordância política no país em que vivemos. “Dentro do quadro montado”, a alternância de poder que defendes é, de fato, apenas ilusória. Repito para ti o que escrevi num outro texto da Esmeril: as diferenças entre o regime político do Brasil e o regime político do Irã são somente superficiais.

Para ser democrata na real, de verdade, de fé mesmo, é preciso:

– admitir que não estamos certos em tudo e que não somos a personificação do Bem;

– reconhecer que as nossas próprias posições podem transmitir a outros as mesmas sensações negativas que as opiniões deles transmitem a nós;

– tolerar as opiniões dos outros na mesma medida em que lhes demandamos tolerarem as nossas; e, finalmente,

– aceitar que a sociedade nunca será como se poderia imaginá-la e que essa sempre poderá tomar temporariamente um rumo que nos desagrade.

A partir daí, pode-se começar a pensar em se desenhar uma constituição apropriada para a nossa comunidade e verdadeiramente democrática. Não é tudo. Precisa-se mais coisas. Porém, é o primeiro passo.

Atualmente, somos uma democracia trans. Apenas nos identificamos como democráticos, quando na realidade somos outra coisa. Se há algo odioso e irreconciliável para mim no quadro posto, é isso.

Por ora, esses pontos e argumentos foram o melhor que consegui fazer para responder o que me perguntaste. Sei que meu esforço foi insuficiente. Fico no aguardo dos teus pertinentes comentários.

Sigo à tua disposição para tentar elucidar quaisquer dúvidas. Eu também tenho muitas em relação ao que escreveste, mas preferi deixar as minhas questões para outro momento.

Um abraço fraterno, sincero, e democrático deste amigo “extremista”, mas profundo admirador teu.

Uruguaiana, 30 de setembro de 2025

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