A imagem que ilustra esta coluna é humorística, mas a piada não foi feita ao acaso e tampouco é gratuita…
O que segue abaixo não se trata propriamente de uma carta, apesar de se parecer com uma. Eu editei o formato, juntando diversas mensagens recentes que recebi pelo telefone de um amigo angustiado. Ele tem a mesma dificuldade de me entender que eu tenho de compreendê-lo.
Nos conhecemos há décadas. Temos carinho e respeito mútuos. No entanto, não ficamos imunes às mudanças no ambiente político nacional. Interpretamos os eventos de maneiras muito diferentes. Isso, graças a Deus, nos incomoda. Ficamos os dois com aquela “pulga atrás da orelha” sem conseguir concatenar as razões para essas divergências recentes.
A amizade segue intacta. Os motivos que nos levaram a ela não mudaram. Porém, na esfera política, a conta não fecha. Já conversamos algumas vezes sobre isso desde 2016 e, pelo jeito, seguiremos conversando. Há uma pergunta que teima ficar sem resposta: ¿como é possível, numa hora dessas, alguém como tu ter ido para o outro lado?
É natural que queiramos eliminar a fonte da ansiedade. Todavia, se isso motiva o diálogo, é preciso reconhecer-lhe algo de positivo. Aproveito este espaço agora para examinar a mensagem dele sem qualquer intenção de encerrar o assunto. Na verdade, além de tentar entendê-lo e me fazer entender, quero vos convidar a participar da conversa.
Certamente, o que se passa entre esse amigo e eu não é exclusividade nossa. Imagino que este exercício possa vos ajudar nas relações similares que tendes.
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Meu querido amigo,
Mudei de pensamento, em algumas poucas coisas daquele nosso debate que você me reencaminhou. Fui provado certo quanto a Bolsonaro. A direita democrática, hoje, está ao redor de Lula [Simone Tebet à frente]. Mas dirás que essa é a direita permitida e que portanto não te atende. Não te atende porque fisiologista? Porque pouco ideológica? Por quê?
Não foi Jair Bolsonaro quem criou a Direita, mas quem surfou a onda de Direita. Já havia uma Direita. Ela só perdeu o medo de se chamar pelo nome a partir de 2018. A Arena virou PDS, que virou PP, que virou Progressistas, que agora é União Progressista. A Direita [conservadora nos costumes e por redução na rede de proteção social] existe num contínuo desde antes de 1988 e até hoje. Pode ser que, por não querer o tudo-ou-nada da disputa do Executivo, tenha se entrincheirado no Legislativo até 2018.
Jair Bolsonaro consumiu a Direita. Nem Dória sobrou. Ninguém. Eduardo Leite é direita democrática. Veja onde ele vai parar. [Não me diga que Tarcísio é Direita democrática porque não é. É um extremista “diet”, mas é um extremista.] E agora o Jair vai se valer dessa Direita consumida para conseguir a mesma impunidade que busca desde quando ameaçou por bombas na adutora do Guandu. A Direita será massa de manobra de um bandido condenado e de sua família parasita e cleptocrática. Será, não. É pelo menos desde 2022, quando acampou na frente de quartéis.
Eu parto do quadro montado e suponho alternância dentro dele. Você quer sair do quadro, quebrar o quadro. O que é tão odioso no quadro que justifica sua quebra? O que é tão irreconciliável pra você entre o seu ideal e o quadro posto?
Me responda isso quando possível, porque estou apreensivo. “Prove me wrong”, em homenagem ao falecido. Mas sem armas.
Belo Horizonte, 18 de setembro de 2025.
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Ao ler uma mensagem desse tipo é fácil focar nas questões levantadas; no que ele entende ser descrição dos fatos; nas definições implícitas de, por exemplo, “Direita (democrática)” e “extremista”; na opinião dele sobre o Bolsonaro e a família; etc. São todos pontos relevantes, mas há algo ainda mais importante.
Antes de respondermos uma abordagem dessas, precisamos estar cientes que, em tais circunstâncias, o mais importante de tudo é sempre a própria mensagem. O exemplo aqui é de uma aproximação polida, mas pode ser agressiva. Acontece também. Isso não muda nada. Amigos de verdade têm intimidade suficiente para brigar. A polidez é uma ferramenta primariamente para se tratar com desconhecidos.
Quando digo que o mais importante é a mensagem, não me refiro à forma; mas ao ato em si. Há interesse na comunicação. O fundamento para a amizade está presente. É mister que tenhamos isso sempre em consideração.
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Sabemos pelos anos de convívio da capacidade de cada um de nós. Sempre tivemos nossas doses de discordâncias, e tudo bem. Contudo, a situação agora é diferente. Estamos diante de uma anormalidade.
O problema do meu amigo para comigo é exatamente o mesmo que o meu para com ele. Aquilo que ele tem como auto-evidente não é compartido por mim e vice-versa. Se nos vemos diante da necessidade de ter que explicar o que nos parece ser o mais ululante dos óbvios, isso é naturalmente inesperado e espantoso.
Tal assombro, inclusive, é de mão-dupla. Não apenas surge a pergunta de por que ele enxerga a situação como ele a enxerga, mas também emerge a dúvida sobre a nossa própria impressão. [Há quem resolva ignorar tal dúvida, mas isso é uma escolha. Essa inegavelmente emerge.] O outro não é um imbecil, nem um idiota, e tampouco é um interesseiro mal-intencionado. Ainda assim, pensa como pensa.
Nessas horas, buscar vieses-de-confirmação pode ser reconfortante, mas a única certeza que nos garantem é, caso estejamos errados, de não errarmos sozinhos. ¿E se o amigo é quem estiver certo? Não podemos descartar essa hipótese; ao menos, nunca completamente. É impossível que estejamos perfeitamente certos sobre tudo.
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A angústia que ele demonstra na mensagem vem do desejo de convencimento; da crença de haver a necessidade de “estarmos na mesma página”. Realmente, seria melhor. Infelizmente, não se pode contar com isso.
O ponto aqui é ser possível alcançar-se concórdia em discordância. Parece paradoxal, mas é só uma limitação da linguagem. É desnecessário ter a mesma opinião para realizar a “amizade política”. Para tanto, basta o reconhecimento mútuo da comunidade.
É preciso aceitar que o outro não será convencido e manterá diversas opiniões as quais consideramos absurdas, ridículas, e até mesmo abjetas. Isso vale para todos. Contudo, isso não significa abdicar-se do diálogo.
A conversa é fundamental. Essa só não é feita para convencer o outro. As duas reais finalidades do diálogo político são: (1) conhecer melhor o outro; e (2) estabelecer consensos temporários sobre o que um tolerará do outro. [E essa ocorre em diversos graus e nos mais variados níveis, do mais particular (entre dois indivíduos) ao mais geral (entre o país todo).]
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Na mensagem acima, isso o que eu acabei de dizer está mais ou menos implícito. Pode estar implícito até para o meu amigo. Afinal, muitas vezes agimos sem plena consciência do que estamos fazendo. Sabemos sem saber. Para a grande maioria das situações, funciona bem. Esta, infelizmente, não é uma dessas.
Estamos experimentando um momento de grave crise política. A amizade pública encontra-se enfraquecida. Isso atinge outros tipos de amizade. Não podemos nos dar o luxo de agir sem entender, pois o risco de terminarmos agravando a situação é real. Antes de responder-lhe as questões suscitadas, é necessário que tais premissas estejam claras para ambos.
P.S.:
É evidente que saí impetuosamente respondendo ao meu amigo assim que ele me escreveu. Errei. Esta coluna visa remediar a situação. Espero que ele me entenda.
Na próxima semana, pretendo entrar no mérito das colocações e das perguntas do meu amigo. Ainda não decidi qual seria a melhor abordagem. O assunto é delicado, e temo que uma coluna seja insuficiente.
“Overexplaining is a trauma response,” indeed…