Hoje encerro a coluna desta semana, dividida em três partes para facilitar a leitura. Ontem, ainda tratando dos paralelos entre política e futebol, escrevi:
“De 1950 até 2002, a nacionalização do ludopédio tupiniquim, de maneiras mais ou menos satisfatórias, buscou acomodar essas estruturas. Quanto menos satisfatórias, piores foram os resultados.”
Agora, me vejo obrigado a falar de como isso ocorreu. Já contei parte dessa história na edição n.º 28 da Revista Esmeril (jan./2022). Na ‘Parte 2’ desta trilogia, fiz referência aos dois caminhos para reconhecer “campeões nacionais”. Um desses dois caminhos foi interrompido em 1968, sendo retomado apenas duas décadas depois.
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A partir de 1967, com a ampliação do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, o processo de nacionalização do nosso futebol foi crescendo rapidamente. Os torneios regionais, que padeciam de institucionalidade, foram sendo suprimidos até desparecerem. Já os estaduais, ligados às federações, mantiveram relevância durante esse período. Apesar do fim da Taça Brasil em 1969, os campeonatos estaduais continuaram a ser classificatórios para o campeonato nacional – o qual foi se expandindo até contar com clubes de todas as federações.
O arranjo provou-se instável. Os doze principais clubes do país ainda não eram reconhecidos como uma das bases do nosso futebol e não foram contemplados. Suas demandas acabaram por forçar uma reorganização em 1989. Então, o calendário foi dividido em duas partes: numa, eram disputados os estaduais e a nova ‘Taça Brasil’ – agora denominada Copa do Brasil; noutra, o campeonato nacional – agora denominado Campeonato Brasileiro.
Esse arranjo fortaleceu os grandes, que passaram a jogar mais entre si. Esse também permitiu aos regionais começarem a reconquistar proeminência – uma surpresa positiva, pois era algo que não se havia imaginado. O sucesso dos torneios do Nordeste e do Norte/Centro-Oeste, inclusive, causou a criação de similares no Sul e no Sudeste e, finalmente, da Copa dos Campeões Regionais.
A ‘Copa do Brasil’ foi expandindo por pressão dos grandes do Rio e de São Paulo, que não queriam ficar de fora, e da TV que tinha interesse na participação desses. A redução do número de participantes no ‘Campeonato Brasileiro’ e o fim da classificação pelos estaduais, resultou no rebaixamento dos clubes grandes – o que também foi causa de instabilidade. Chegou ao ponto de, em 2000, a C.B.F. recusar-se a realizar o ‘Campeonato’ – a exemplo do que já ocorrera em 1987.
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Houve outros problemas, como a expansão da Libertadores e a restrição da participação de clubes na ‘Copa do Brasil’, além da atuação desastrosa do S.T.J.D. em diversos momentos. Tudo isso culminou numa nova reorganização em 2003, com a adoção do Brasileirão por pontos corridos, o fim dos regionais, e a redução dos estaduais a praticamente torneios de pré-temporada de luxo no início do ano.
Tal estrutura trouxe um novo desequilíbrio – maior do que o anterior. Desde então, houve correções, como o fim das restrições à ‘Copa’ e a recriação de regionais para os clubes do Nordeste, do Norte, e do Centro-Oeste. Contudo, o foco no topo da pirâmide vêm prejudicando os clubes pequenos, principalmente no interior dos estados.
Atualmente, são pouquíssimos os clubes com calendário anual de jogos. Somente os 40 participantes das séries A e B (1.ª e 2.ª divisões) têm 38 partidas garantidas em competições nacionais. Na Série C (3.ª Divisão), doze clubes disputam apenas 19 jogos; seis, 25; e dois, 27. Na Série D (4.ª Divisão), trinta e dois clubes disputam apenas 14 jogos; dezesseis, 16; oito, 18; quatro, 20; dois, 22; e dois, 24.
Ademais, a concentração permitiu que, nos últimos 9 anos (2016-2024), apenas dois clubes dominassem o cenário nacional. No período, Palmeiras e Flamengo levaram 66,7% dos títulos (6 de 9) e terminaram entre os dois primeiros colocados em 55,6% das vezes (10 de 18). Não estamos em níveis europeus [ou estaduais] de dominação, longe disso, mas algo assim por um período tão longo jamais tinha ocorrido antes no Brasil.
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Tais distorções são resultado da desconsideração das bases do futebol brasileiro. Porém, não são as únicas. Há mais. Quando os fundamentos são ignorados, isso tem efeitos em todas as áreas. No caso do futebol, a história nos mostra como o arranjo do calendário afeta, por exemplo, a Seleção.
As criações do Rio-São Paulo (1950) e da Taça Brasil (1959) são acompanhadas pela dominação brasileira nos mundiais de 1958 a 1970. As mudanças de 1969 em diante, por outro lado, vêem os resultados do Brasil decaírem. Já as reformas de 1989 foram seguidas por um aprimoramento no futebol da Seleção. No entanto, o Brasil coleciona fracassos em Copa do Mundo desde o título mundial de 2002.
Parece, de fato, haver um forte paralelo entre uma coisa e outra. Isso aponta contra a atual estrutura do ludopédio brasileiro. Para que essa resulte em efeitos positivos, há a necessidade de equilibrar os interesses das partes envolvidas: clubes grandes, médios, e pequenos; torneios estaduais, regionais, e nacionais; CBF e federações estaduais; Seleção, clubes, e jogadores; além das mídias de todos os tamanhos, de rádio, TV, e internet.
Não se trata de um arranjo fácil de se conseguir, ainda mais que é preciso fazer isso proporcionalmente e ainda deixar margem para as partes interagirem entre si. O arranjo precisa ser flexível; não pode ser cristalizado. Apesar da dificuldade, contudo, é necessário tentar. Ainda que imperfeita, a minha proposta publicada aos 8 de setembro de 2005 busca exatamente fazer isso. Esse é o ponto principal do exercício.
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Para uma Constituição política, os desafios são similares – ainda que mais complexos. É preciso ir à história e entender como se chegou até onde estamos. É necessário reconhecer quais são as partes que formam a base da nossa comunidade política. Só então é que se pode pensar em como ordená-la.
Nosso passado mostra uma tendência a queimar etapas; a tentar organizar algo que se desconhece. Não surpreende, pois, que colecionemos fracassos.
Colunas anteriores:
Prólogo: Um Novo Calendário para o Futebol Brasileiro
Parte 1: Sobre Constituintes e Futebol
Parte 2: Sobre Constituintes e Futebol