Baseado em um episódio da vida de São Martinho de Lima
Frei Martinho ia saindo da enfermaria, onde acabara de operar mais algumas curas milagrosas. Como era de seu costume, vinha de cabeça baixa, agradecendo a Jesus pelos prodígios de que não se sentia digno de ser intercessor, quando se assustou com a presença do Irmão Bartolomeu a encará-lo. Estava acostumado com a rudeza daquele Irmão, mas naquele dia podia enxergar um ódio todo especial em seu coração, que era todo trevas. Antes que pudesse dar bom dia, Irmão Bartolomeu disparou:
– Cachorro imundo! Encantador de ratos! Mulato nojento! Pensas que não te vi fazendo seus truques e salamaleques com os enfermos? Pensas que não te vejo fingindo tratá-los com suas mandingas? E ainda levas créditos por essas patifarias, essas fraudes de mulato!
Um instante de silêncio. Irmão Bartolomeu sabia que não haveria resposta, que Frei Martinho continuaria de cabeça baixa aguentando tantos insultos quantos ele proferisse, mas queria gozar aquele momento de humilhação. Olhava-o com superioridade, sorria. Apontou-lhe o dedo na cara:
– É isso mesmo, não passas de uma fraude, e de um mulato fétido, um cachorro mulato nojento, um crioulo vira-latas!
Frei Martinho então pôs-se de joelhos diante do outro. Aquilo encoleirizou ainda mais Irmão Bartolomeu, que estava a ponto de cuspir no pobre humilhado, mas conteve-se sob um olhar do Superior, que não havia visto chegar:
– Martinho – o superior olhava para o pobre Frei com um misto de piedade e revolta – Martinho, levanta-te já! Afinal, o que está acontecendo aqui, meu filho?
– Num é nada não, meu bom Pai – Frei Martinho ia se levantando, mas sempre de cabeça baixa. Tô aqui recebendo as cinzas da Quarta-feira de Cinzas de Nosso Senhor. Irmão Bartolomeu tá me fazendo esse favor, que é pra me lembrar que é do pó que eu sou. Só isso.
O superior deu um suspiro, dispensou os dois e seguiu seu caminho. Irmão Bartolomeu foi-se com as palavras de Frei Martinho na cabeça, e sentiu-se pesado, o arrependimento de anos de repente havia lhe caído sobre os ombros. Sentiu como se um dardo atravessasse seu o coração. Então, viu que também era pó, e foi se confessar.