Uma reflexão sobre a pureza de alma dos intervencionistas de carteirinha, e outras pendências
Imagine um feixe de água que sulcou, por séculos, uma faixa de terra, ali imprimindo a senda de um rio, de repente defrontar uma barreira. O feixe não vai evaporar, mas acumular-se diante da barreira, até alterar seu curso em busca de perseverar fluindo. O destino de toda força permanente é seguir adiante. A força bruta não cessa nem retrocede.
Transponha a imagem ao curso do poder de homens sobre homens e encontrará a história polifacetada dos golpes de estado. Diante de mecanismos de freios, ou obstáculos, o curso do poder, acumulando-se, desvia de barreiras e reimprime outro canal de execução. O destino de toda força permanente é seguir adiante, razão por que a força bruta não cessa, nem retrocede, mas se desenrola de modos variáveis, enquanto há fluxo — ou anseio de poder.
Golpes de estado são estratagemas que visam conservar o poder; defender o estado, para além de conquista-lo. No vocabulário comum do brasileiro médio, golpe de estado significa usurpação do poder; significa um grupo apropriar-se pela força do governo de um país. O problema está em que muita gente assedia o trono de ferro o tempo inteiro, e o estado moderno é tão complexo que o uso da força (a dita pólvora) é insuficiente para tomar ou defender um Estado.
Não acreditam? Então examinem melhor o poder da burocracia, da canetinha prateada de um ministro do poder judiciário, por exemplo, e revejam suas noções de “golpes de estado”.
É antiga a nova maneira de tomar o poder, considerando que Maquiavel ficou para trás desde as inovações de Trotsky. O método gramscista, por sua vez, é uma variação interessante da técnica trotskista. Ambos têm em comum o fato de não exigir, como condição prévia para a tomada do poder, um caos social generalizado. Trotsky não elaborou o seu plano a partir das condições políticas da Rússia de então; mas a partir da percepção arguta sobre as condições fundamentais para o funcionamento do Estado.
“Como esse Estado funciona? De que mecanismos ele depende? Que ambientes esse curso do poder abrange? Quais seus pontos fracos? Quem são os ocupantes dos postos estratégicos nos sistemas de comunicação, locomoção, distribuição de suprimentos, cadeia produtiva, etc, etc?” Trotsky se concentrou nessas perguntas, cujas respostas lhe evidenciaram onde estava o poder a ser tomado na ocasião.
Os intervencionistas de carteirinha, aquele pessoal cujo sonho dourado é ver o STF domado pelo binômio cabo e soldado, têm uma pureza de coração infantil, a julgar as Técnicas de Golpes de Estado utilizadas por fascistas, comunistas e nazistas nos anos 30 do século passado. Há pouco menos de cem anos, o diplomata e jornalista italiano Curzio Malaparte despertou a fúria de Hitler, Lenin, Mussolini e Trotsky ao publicar um compêndio das práticas políticas de sua época, obra esta cujo objetivo foi (e ainda é) defender a liberdade. Eis que ela acaba de ser publicada no Brasil pela Avis Rara, selo da Faro Editorial. Um episódio melhor que o outro. Todos reais. O ditador e seu domador descritos de forma precisa, sempre com base em fatos históricos. Vai vender como água…
Quem sabe não sana um pouco a absoluta ignorância em que estamos no assunto?
Em 1931, pouco antes de Hitler tomar o poder, Malaparte anunciava, nesta obra, que ele certamente viria a fazê-lo, mas usando meios legais, não por meio de cabos, soldados ou bazucas. Eis que em 2022, 91 após a publicação que deixou os ditadores europeus furiosos – afinal, revelar seus métodos é ensinar as nações livres a defender-se de sua velhacaria – o brasileiro médio ainda acredita na conversa fiada de jornalistas estranhamente apegados à visão maquiavélica – e ultrapassada – de golpe de estado como sinônimo de bazuca e coturno militar. A ironia maior, claro, é que um sofisticado golpe já aconteceu, não se deu sem vínculo com oficiosos trâmites legais e pode ser “legitimado” no final deste mês por um bando de coadjuvantes — o eleitor — que acredita ter algum poder na vida política nacional.
De golpe em golpe, o sulco da história política brasileira vai se desenhando às margens do discurso oficial – sede de outros inúmeros pequenos golpes, embora se venda como barreira contra qualquer um.
Esmeril Editora e Cultura. Todos os direitos reservados. 2025
por essas e por outras acabar com o sistema é votar nulo, os golpistas ficam apavorados. deslegitimar o poder elas tremem , até o Bolsonaro pediu para votar mesmo que for voto útil. só não vê quem não quer.