ISRAEL SIMÕES | O homo sentimentalis II: The show must go on

Israel Simões
Israel Simões
Terapeuta, filósofo clínico e curioso observador da vida cotidiana.

“Vou dedicar menos tempo ao sentimentalismo e mais tempo à realidade”, escreveu a jovem Anne Frank enquanto lutava por sobrevivência em um esconderijo, consciente de que seu diário seria mais do que uma distração pessoal, mas uma obra de reflexão para as gerações posteriores.

Eu devia ter 9 anos de idade quando meu pai resolveu me levar na casa de seu irmão para uma reunião de adultos, sem que eu carregasse um carrinho sequer, qualquer coisa que me distraísse. Para que eu não atrapalhasse a conversa, meu tio, que nunca foi muito bom com crianças, colocou-me sentado numa mesa, entregou-me fones de ouvido e disse: “escuta aí este CD, aprecie uma boa música”. Era Let’s Talk About Love, disco da cantora canadense Céline Dion, com contribuições de Barbra Streisand, Bee Gees, Luciano Pavarotti e Carole King. Um dos CD’s mais vendidos de todos os tempos graças à faixa My Heart Will Go On, tema do filme Titanic. A partir daquele dia, o repertorio água com açúcar de Céline passou a fazer parte da minha playlist. Ali eu descobri que gostava de vozes bem afinadas e produções musicais de alto nível, inconsciente de que estava domesticando meus ouvidos em um estilo de composição musical vulgar, feito sob encomenda para provocar emoções e arrepios os mais imediatos e descartáveis.

Aos poucos notei que a vida inteira de Céline era um grande épico dramático. Casada com René Angélil, empresário que a descobriu ainda aos 12 anos de idade, assumiu sua paixão por ele aos 19 anos, antes que as páginas de fofoca tratassem como escandalosa sua relação com René, 26 anos mais velho, provavelmente iniciada quando Céline era menor de idade. Eles tiveram três filhos juntos e construíram a carreira internacional bem-sucedida da cantora, tendo como auge o ano de 1998, quando o filme Titanic fez sua voz tocar nas rádios ao redor do mundo. Um ano depois, no entanto, René descobriu estar com câncer na garganta, o que levou Céline a interromper sua vida pública para se dedicar integralmente ao tratamento do marido. A mídia abordou o episódio como um grande sacrifício de Céline Dion, já que aquele ano poderia ser, para ela, o mais lucrativo em turnês e aparições na TV.

Em 2001, depois de 2 anos de reclusão, com René já curado, Céline deu à luz ao seu primeiro filho, René-Charles Angélil, ano em que também retornou aos palcos. A partir dali a cantora viveu um tempo de estabilidade e sucesso na carreira, com uma residência fixa de apresentações em Las Vegas, aclamada por público e crítica. Mas as especulações sobre a saúde de René e as consequências da diferença de idade do casal foram crescendo, especialmente porque, após o tratamento contra o câncer, René passou a apresentar uma aparência mais frágil.

Céline também enfrentou um grande desafio em sua segunda gravidez, fruto de uma inseminação artificial, depois de seis tentativas frustradas. Ela relatou ter feito duas cirurgias para corrigir anomalias em seu aparelho reprodutor (sem especificar o problema) e que este longo período em busca da segunda gravidez foi de muito estresse e desgaste emocional.

Em 2013, já com seu filho mais velho adolescente e os dois meninos gêmeos com três anos de idade, a família recebeu a triste notícia de que o câncer na garganta de René havia retornado. Ele realizou uma nova cirurgia para remoção do tumor, mas foi informado, no ano seguinte, de que sua doença era terminal. Foram mais dois anos de lançamentos atrasados, apresentações canceladas e reclusão até o falecimento de René, em 14 de janeiro de 2016.

O funeral, na imponente basílica de Montreal, no Canadá, contou com um cortejo em que Céline caminhou com seus três filhos, de mãos dadas com os menores, com o rosto parcialmente coberto por um véu, enquanto sucessos da carreira da cantora eram tocados. A cerimônia foi aberta ao público.

Todos estes episódios foram matéria de reportagens de TV e inúmeras entrevistas nas quais Céline priorizava jornalistas especializados em cobrir a vida de celebridades, como Barbara Walters, Joy Behar, Ellen Degeneres e Oprah Winfrey. Sua trajetória, desde a apresentação vitoriosa no Festival Eurovisão da Canção de 1988, passando pelos shows lotados, apresentações no Oscar, até a retomada da carreira após a morte de René foi repetidamente retratada pela mídia.

No início deste mês, Céline Dion lançou um documentário pela Amazon Prime, I am: Céline Dion, onde mostra sua luta de anos contra a Síndrome da Pessoa Rígida, uma doença neurológica que afeta o Sistema Nervoso Central causando uma série de espasmos musculares, torções e ataques paroxísticos. Nos trechos divulgados na internet, podemos ver a cantora bastante emotiva, mostrando a dificuldade para projetar sua voz e até reconhecendo o uso de playback em algumas apresentações no passado (ela afirmou sentir sintomas desde 2008). Além das entrevistas com Céline, o documentário apresenta os tratamentos aos quais a cantora foi submetida, conversando com especialistas, alguns dos quais acompanhando de perto a evolução da cantora em seu esforço por recuperar o controle sobre o seu corpo.

Mas o documentário vai além. Ele literalmente expõe crises de Céline que se tornam não apenas físicas, mas psicológicas, em um nível quase psiquiátrico, bastante incômodo de assistir. Muitas pessoas relataram comoção ao ver as cenas, mas fica o estranhamento ao pensarmos que uma produção inteira da Amazon assistiu Céline Dion gritar e gemer, dentro do consultório, enquanto se contorcia de dor pelos fortes espasmos musculares. Céline chega a cantar diante da entrevistadora com voz craquelada e fora de afinação, evidenciando as falhas em suas cordas vocais, em seguida caindo no choro e confessando seu sofrimento pela interrupção na carreira. Todos esses registros, somados a já conhecida história de lutas da cantora, levam o público a criar uma profunda empatia pela sua trajetória, torcendo pela sua plena recuperação.

Para uma inteligência mais exigente, no entanto, um certo constrangimento permanece no ar. Seria toda essa exposição de intimidade um sacrifício em prol de alguma conscientização ou parte do show business americano, cada vez mais viciado em dramas pessoais, crises e comebacks sensacionalistas?

A percepção de que as coisas ali no documentário estão um pouco forçadas para gerar close fica mais forte quando Céline olha para a câmera e solta frases como “Não é difícil fazer um show, é difícil cancelar um show.”, ou “Se quiser ir rápido vá sozinho e se quiser ir longe vá acompanhado.”, ou ainda “Uma performance é muito maior que uma música.” Ela chega a declamar, com cabelo preso, cara lavada e roupas sóbrias a seguinte frase: “Se não puder correr, andarei. Se não puder andar, rastejarei. Mas não vou parar.”, trechoamplamente propagado pelas páginas de internet que divulgaram o documentário.

Não seria estranho imaginar que Céline colocou sua vida privada na prateleira dos produtos de entretenimento. Apenas três meses após o falecimento de René Angélil, a cantora compareceu ao prêmio Billboard Music Awards, um dos mais importantes eventos da indústria fonográfica, para apresentar um cover de The Show Must Go On, sucesso da banda Queen. E cantou com expressão convicta: “O show deve continuar, o show deve continuar. Por dentro, meu coração está se partindo, minha maquiagem pode estar se desmanchando, mas o meu sorriso continua no rosto”. Em inúmeros momentos durante a apresentação, Céline “bateu continência”, um gesto de submissão militar que ela mirou na direção dos artistas e produtores que ocupavam a plateia.

Quando a morte de René completou um ano, Céline publicou um vídeo em suas redes sociais no qual aparece deitada em sua própria cama de casal, rodeada por velas e fotos de René, chorando e abraçando uma enorme almofada vermelha em forma de coração ao som de uma versão, em sua própria voz, de My Love, da cantora Sia.

Foi com todo este histórico de eventos particulares explorados por grandes produções para a TV e, mais recentemente, nas plataformas de streaming, que a cantora canadense chegou ao alto da Torre Eiffel, há pouco mais de dois meses, encerrando a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Não era apenas uma apresentação de Hymne à L’amour, de Édith Piaf, consagrada cantora francesa, mas o clímax da novela que se tornou a relação de Céline Dion com o público. Tanto foi assim que, nos comentários pela internet, não faltaram elogios admirados à performance de Céline considerando as cenas angustiantes recentemente divulgadas no documentário da Amazon.

A essa altura podemos conjecturar que o gesto de submissão repetidamente executado na apresentação da Billboard foi apenas uma das evidências de que Céline é mais uma artista que se curvou à agenda woke da cultura mainstream.

Há anos Céline se desviou de vez das canções cristãs, natalinas, dos grandes clássicos românticos, da técnica lírica de canto para se enveredar em baladas pop recheadas de emotividade, buscando se alinhar às novas tendências do indie pop e pop alternativo. Estrelou, em 2018, uma linha de roupas infantis sem gênero com um comercial bizarro no qual defendia, com a sua própria voz, que os filhos não são propriedades dos pais. Na propaganda a cantora encena invadir uma maternidade e, por uma espécie de magia negra, transforma o rosa e azul de meninos e meninas em roupas pretas e cinzas sem distinção de sexo, com estampas de cruzes, caveiras e escritos como “Nova Ordem” (há literalmente um bebê deitado com uma blusa de frio preta e estampada, em letras garrafais, “NEW ORDER”…). Céline Dion também passou a ser presença constante em desfiles de moda de alta costura nos últimos anos, usando roupas excêntricas e apresentando uma imagem assustadoramente magra. Sua aparência cadavérica incomodou os fãs e virou notícia nas principais páginas de fofoca internacionais, como Daily Mail.

Quando Anne Frank declarou: “Quero continuar vivendo depois da minha morte”, sabia do seu esforço por realizar uma obra perene, registrando experiências pessoais que representassem sentimentos universais, enquanto esteve presa nos cômodos ocultos de uma empresa durante a ocupação alemã nos Países Baixos, durante a Segunda Guerra Mundial. Infelizmente Céline Dion, na contramão de seu talento artístico, escolhe explorar o emocionalismo mais superficial do impacto visual momentâneo, floreado por direção, roteiro e trilha sonora, sempre no objetivo de atingir o mal gosto da cultura de massa.

Que a cantora canadense tenha vivido suas batalhas pessoais é inegável, mas no lugar de tais experiências serem a matéria-prima de criação artística, Céline escolhe o caminho mais fácil: a exposição. Uma tentação para os sujeitos imersos neste confortável estilo de vida moderno, presos na falsa agenda da paz, que retira da arena o antagonismo que move o homem aos grandes sacrifícios e realizações. Na falta de uma causa justa, de um inimigo real, qualquer dilema interior serve de pretexto para forjar uma autobiografia comovente.

Três meses antes da cerimônia de abertura das Olimpíadas, Céline foi convidada pela revista Vogue a comentar looks marcantes de sua carreira. E não é que a matéria deu um jeitinho de colocar uma roupa qualquer da cantora usada nas ruas de Paris, só para ela gastar uns bons minutos do vídeo elogiando a capital francesa?

Para uma cidade que inaugurou e perpetuou os modos de vida atuais, frutos da mentalidade revolucionária, progressista e anti-cristã que avança há pelo menos três séculos, a presença de uma das últimas divas da música popular fechando a cerimônia de abertura das Olimpíadas oferece a perfeita imagem de uma transição entre eras. Uma espécie de rito de convocação para que os jovens vendam sua vocação por uma dose de fama, elogios e aplausos, abraçando o roteiro do compartilhamento das fraquezas, da pauta de conversas empoladas sobre emoções, traumas, complexos e angústias interiores que nunca se resolvem.

O sentimentalismo é como uma síndrome que paralisa o poder de ação do indivíduo (…).

Se não podemos negar um certo legado da discografia de Céline Dion para a música pop contemporânea, também é inevitável constatar que toda a sua carreira é uma espécie de anorgasmia. Na falta de um magnum opus, de um êxtase genuíno, junta-se o amontoado de pequenas confidências e intimidades, na tentativa de conferir alguma substância ao conjunto da obra.

E é assim que o show deve continuar: uns na posição de discípulos telespectadores, outros no estrelato caricato, feito sob encomenda para o varejo do entretenimento.

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