A depender do nível intelectual do observador daquele frisson gerado pela cadeirada em rede nacional num dos debates à prefeitura de São Paulo, ouviremos mesmices do tipo: “o propósito foi alcançado, uma vez que o país inteiro só falou nisso, e estar em evidência, ser conhecido, é a meta inicial”.
Pouca gente é mais tópico de conversação, em termos de história política, do que Hitler. Poucas coisas são mais espalhadas aos quatro ventos que as políticas de extermínio postas em prática por ele. Chaplin fez do tirano um personagem; desenhos animados cansaram de fazer-lhe referência; qualquer político (ou ministro do judiciário) contemporâneo, cuja reputação esteja na mira de adversários corre o risco de ser comparado a Hitler, ícone de autoritarismo. Nem por isso, essa popularidade toda é sinal de vitória. O diabo não gosta que falem dele – prefere que falem mal de Deus.
A vantagem de estar às margens das eleições, ainda mais de uma tão falada como essa, é a verdadeira e absoluta liberdade de análise, carente em todos os compromissados com uma agenda qualquer. A desvantagem é isso envolver aborrecimento adicional pelo compromisso de certo público.
Boa parte dos “analistas” associados ao movimento conservador brasileiro aderiram a um notório trambiqueiro, pressionando amigos e aliados a engolir a narrativa criada artificialmente para impulsioná-lo: “a única forma de não perder para a esquerda em São Paulo é apostar em alguém forte o suficiente para derrotar Guilherme Boulos, coisa que o atual prefeito é incapaz de fazer”. Essa foi a primeira narrativa. Depois vieram outras.
Após o episódio da cadeirada, vexaminoso para o autoproclamado triatleta que já ensinou seus seguidores a vencer tubarões no oceano, surgiu a última história da carochinha visando enfiar na cabeça de uma base sem recursos intelectivos o quão errado era rir do ocorrido. Afinal, tratava-se de violência inaceitável contra um ser-humano alvo de terríveis perseguições. Não colou, mas o pessoal continua dobrando, triplicando, quadriplicando a aposta e trabalhando forte no imbecil coletivo atualizado: o direitista.
“Não confiemos nas pesquisas”; “vai ser no primeiro turno”; “nosso cara não é santo, mas seus inimigos são piores”; “não quero o poder, apenas evitar que a cidade seja entregue a demônios”; etc. A tônica é criar um cenário de terra arrasada por um bloco a ser massivamente rejeitado, sem espaço para nuances, atitudes e distinção individual. “Eis a ÚNICA opção contra TODO O MAL”.
Se antigamente a imbecilização coletiva recíproca, fenômeno social diagnosticado e nomeado por Olavo de Carvalho nos anos 90, afetava a esquerda política, hoje já não se pode afirmar que apenas malvados esquerdistas têm sua tópica de asneiras a sacar da cartola em momentos de panfletagem oportuna. A direita tem sua coleção de lugares-comuns, todos os quais evocou ao longo da campanha à prefeitura de São Paulo.
Como o cenário a que esse conjunto de tópicos foi aplicado é absolutamente ridículo, o artifício acabou escancarado. A alegação de a ascensão do novo líder conservador nacional ter caráter “orgânico” tornou-se digna de questionamento por parte de indivíduos pensantes e pouco sensíveis à pressão do grupo. Esses viram a articulação entre atores singulares mirando projetar uma visão das coisas sem correspondência aos fatos, embora expressão de uma agenda específica, cuja aderência envolveu nomes com respeitabilidade junto à base bolsonarista – público de baixa capacidade intelectual e historicamente educado pela estratégia da imbecilização coletiva, diga-se de passagem.
Imaginemos o povo desabituado a refletir como uma massa amorfa receptiva a jargões aptos a lhes dar forma. Essa forma são as opiniões de momento. Essas opiniões de momento, proferidas em massa, geram barulho. Esse barulho é chamado militância. É menos difícil influenciar militâncias que formá-las. Quem as constitui é a esquerda, com meta e por vocação.
Um ser-humano funcional, diferentemente, forma a alma para evitar ser reduzido a militância. Mas o militante desconhece completamente a experiência da alma desperta. Logo, é desprovido de meios para descrever algo diferente do que ele seja. Por isso, se o próximo não repete os jargões provisórios aos quais se agarra sua alma, conclui que aquele só pode estar a repetir jargões aos quais ele se opõe com veemência.
Preso à dicotomia do SIM e do NÃO, cego aos matizes dos quais dependem qualquer esboço de pensamento, torna-se um açougueiro do raciocínio no mercado das opiniões. Condicionado por um cesto de lugares-comuns (tópica), atravessa a feira da linguagem proferindo chavões e repelindo o seu “contrário” (entre aspas, pois tudo o que não são seus chavões, toma-lhes como sendo absoluta oposição) com reprimendas.
Se a ala conservadora da sociedade tem sua militância barulhenta e um punhado de seres-humanos funcionais, é preciso reconhecer que algumas pessoas desse seleto grupo deliberaram mover a militância a trocar de ídolo: deixar Bolsonaro e aderir a Marçal. A estratégia utilizada foi o discurso de imbecilização recíproca proferido entre lives e postagens em redes sociais; habitat no qual os conservadores predominam.
Evidentemente, parte da militância, com a cabeça já habituada ao conjuntinho de lugares-comuns que ela associa a verdades absolutas, absorveu o besteirol, e o solo para 2026 já foi arado. Se até outro dia ilustres gênios da ala conservadora proclamavam a necessidade de restaurar a profunda crise moral em que estamos mergulhados, na prática agem domando militâncias e movendo opiniões conforme a modelagem estabelecida pela esquerda gramscista: a troca educada de imbecilidades com seus pares, todos reconhecidos por parte da sociedade como autoridades intelectuais confiáveis.
A música voltou a tocar e os participantes giraram em torna da cadeira posta ao meio do círculo. Interrompida a música, a cadeira foi ocupada. Os coadjuvantes seguiram batendo palmas ao redor e acataram sem demora o novo vencedor. Quando se “joga o jogo” – realista, calculista, maquiavélico, plenamente moderno – do pragmatismo, os fins justificam os meios, e o plano, afinal, é não perder lugar no jogo.
Felizmente, a vida é feita de universos que excedem a imbecilização calculada do próximo.
Que universo é o vosso? Domador de militâncias? Militante embrutecido? Ou ser-humano funcional disposto à interlocução sincera?
Nós somos, todos nós que escrevemos aqui para vós, seres-humanos funcionais dispostos à interlocução sincera. Não por agenda, mas por necessidade; não por crer que assim “teremos nosso país de volta”, mas por amar e honrar a racionalidade inerente à nossa natureza; não por ódio à esquerda, mas por amor a Deus.
Se cultivais outros ídolos, leitor, este ambiente pode soar nocivo aos vossos (maus) hábitos. Se sonhais com redentores endinheirados, leitores, este ambiente pode ferir vossos sentimentos. Se sois cegos à beleza e centralidade do sacrifício, jamais compreendereis nossa disposição de perder público, em vez de usá-lo como papel higiênico de ambições corriqueiras.
Por outro lado, se entendestes perfeitamente tudo o que foi dito até aqui, esta é a vossa revista, e nossos colaboradores, os interlocutores que procuráveis.
Boa leitura e até a próxima edição!