Uma crônica tragicômica
Estávamos a alguns passos da estação Brigadeiro onde, sentados em torno duma mesinha, esperávamos pelo café. — Treze meses?! — perguntei quase gritando antes de sorver o conteúdo da pequena xícara servida pelo garçom. — Sim, treze meses — asseverou o amigo que me acompanhava no café. Era o início do outono paulistano, estação melhor percebida (e observada) à tarde, na calçada de alguma avenida larga por onde o arzinho gelado circula melhor.
Vínhamos da missa. Cumprimos o preceito às 15 horas daquela tarde e, sentados no café, ocupávamo-nos de um assunto ordinário, mas interessante: a demissão de uma amiga sua. Eu não conhecia a moça que tomara o rumo da rua, mas o amigo falava com um estranho entusiasmo (eu diria descabido, mas ele não aprovaria), que eu não pude deixar de me interessar. Como sou miserável: o friozinho, o café (que agora fazia par com uma porção de pãezinhos de queijo que o garçom trouxera) e a conversa fizeram-me esquecer por completo que, há quarenta minutos, eu estivera na missa. E comungara.
— Ela foi demitida depois de não cumprir com a meta de vendas durante treze meses seguidos — continuou o amigo — O ponto é que, quando minha amiga foi convidada a se retirar, um funcionário novo tomou o seu lugar. Ele trouxe consigo uma atmosfera de desconfiança para o nosso ambiente de trabalho. A demissão dela foi repentina. Da noite para o dia nossa amiga, por quem nutríamos afeto verdadeiro, foi substituída veja você. Olha, toda a gente ficou arrasada — concluiu meu camarada.
— Garçom — disse eu — Por favor, mais um cafezinho. Obrigado — Ah, sim — emendei antes que o prestimoso miúdo se afastasse — E mais uma porção desses pãezinhos de queijo maravilhosos.
O garçom foi-se lá para dentro e nós ouvimos uma pequena discussão, parecia-nos que o seu chefe estava, sem medir palavras, aplicando-lhe uma soberba bronca. — Pô, rapá, faz o teu serviço ligeiro! Aqui não é lugar de lesma, não! Ouviu?! — disse o superior do miúdo. A mim pelo menos não pareceu que o pobre garçom servia com morosidade, mas seu chefe, esquentadinho, era claramente da opinião contrária, a ponto de fazer uso de um palavreado impublicável.
O burburinho que vinha da cozinha cessou. Por um longo tempo o garçom não deu o ar de sua graça tão prestativa. — Ela chorou antes de ir embora; e chorou lá mesmo, diante de todo mundo — disse o amigo, enquanto mordiscava um pãozinho de queijo.
— Nós perdemos a confiança na empresa, no chefe, nos colegas de trabalho e… — ele suspendeu a frase para engolir o bocado que estava mastigando — …no sistema, meu caro! Perdemos a confiança no próprio sistema! — concluiu.
Gosto de observar, de ouvir, de tomar nota do que se passa. Falei pouco. Preferia ouvir. Mas tive de intervir nesse momento: — Por quê? Foi só uma demissão; não foi o Apocalipse. Uma demissão parece o fim do mundo pra você? — perguntei.
— Não foi só isso — ele voltou a falar ao mesmo tempo em que tentava saborear o pão de queijo. Tossiu, bebeu café, suspirou, olhou pela janela… Era quase noite. O frio aumentara. Percebi que ele olhava para a entrada da estação. — Quer ir embora? — perguntei. — Ainda não — ele respondeu.
— Veja — ele continuou, mas agora falando mais seriamente — O clima de desconfiança no nosso ambiente de trabalho ficou insuportável. Eu percebi que eu e meus colegas éramos substituíveis, absolutamente substituíveis. Nenhum laço de camaradagem, de afeto ou de amizade poderia impedir que, numa manhã qualquer, ao chegar para a labuta cotidiana, eu fosse simplesmente demitido. Mais do que isso: substituído — ele completou.
— Posicionei-me contra aquilo, contra tudo aquilo — concluiu o amigo.
— Caramba! — reagi– E qual foi o desfecho? — perguntei olhando de soslaio para a cozinha do café desejando que o garçom saísse de lá com a minha porção de pão de queijo. — Fui demitido também — o amigo respondeu. Houve um silêncio inesperado…
— Minha Nossa Senhora!, o que é isso? — gritei. Uma série de estrondos provenientes da cozinha deixou-nos apreensivos: ouvíamos, preocupados, o renascimento da discussão entre o garçom e o seu chefe. Mas agora quem ditava era o miúdo. Ambos saíram da cozinha e a peleja deu-se ali, diante de nossos olhos: pratos voadores cuja trajetória alternava-se entre a careca do chefe e as paredes do estabelecimento espatifavam-se em mil pedaços – e assim como a louça, os talhares, os vasos de flores, qualquer objeto ao alcance das mãos do miúdo era atirado contra o seu chefe. Num momento, atônito, eu pude ver alguns pães de queijo fazendo as vezes de peças de artilharia.
Olhei para o meu amigo: o sujeito tinha uma expressão cômica na cara, parecia que se esforçava para conter o riso. — Vamos embora! — disse eu. — É, isso aqui é uma loucura — ele respondeu. Enquanto ouvíamos os impropérios, os estalos das coisas quebrando e as inúteis intervenções dos outros clientes, levantamo-nos e tomamos o rumo da saída. Mas, não. Antes de atravessarmos a porta estacamos: e a conta?
O garçom, com o olho direito roxo, os cabelos desgrenhados e a camisa de alfaiataria rasgada, percebeu que estávamos cansados do espetáculo e que iríamos embora. Como um verdadeiro gentleman que conhece o seu dever, o homem suspendeu a peleja, ajeitou o colarinho (sem perceber que perdera a gravata-borboleta), foi até nossa mesa, apanhou a nossa comanda e calculou quanto devíamos pelos cafés e os pães de queijo. Meu amigo, boquiaberto, não aceitou dividir: pagou a conta inteira. Antes que desaparecêssemos sob a entrada do metrô voltamos a ouvir os sinais temerosos da suspensão do armistício. Sentados no banco do vagão, não ousamos dizer mais nada sobre a amiga demitida.
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