“Pessoal, primeiramente aquele bom dia abençoado por Deus!”
Naquele submundo que nós, orgulhosos moradores da metrópole, chamamos de metrô ouvem-se muitas vozes, vê-se muita gente todos os dias, invariavelmente. A voz que mais se destaca do falatório é o timbre feminino bilíngue dos alto-falantes: em português e inglês a mulher diz para fazermos isto, para evitarmos aquilo, para seguirmos por aqui… Urge precaver-se contra os trombadinhas. Para a doce voz feminina do metrô é ilegal dar esmolas aos pedintes. E, se o sujeito é surdo, que ele não pense que estará livre dos imperativos do alto-falante; há placas com as mesmas instruções por todas as dependências do metrô.
Aparentemente, no entanto, há meios relativamente eficazes de escapar daquele ambiente controlado: jornais, revistas, livros e, mais recentemente na História, smartphones. Basta plugar os fones nos ouvidos ou abrir um livro para o sujeito ver-se livre da lobotomia — ou quase. Quem quer que tenha tido a experiência de ler no metrô sabe que não é fácil pelejar contra um exército tão numeroso de distrações. Para começar, o comboio vem apinhado de gente; exceto pelas tréguas dominicais, quando as pessoas não vão à Missa, o trem é sempre cheio.
Depois, se o sujeito tem sorte e consegue um lugarzinho para sentar, ainda tem de lutar para se manter concentrado na leitura a despeito dos shows improvisados dos saxofonistas, flautistas, violinistas, alabês, gaiteiros; isso sem falar nos dançarinos de hip-hop que, com os seus saracoteios, só faltam arrancar o nariz dos mais distraídos. Na última incursão que fiz até a Sé fui alvo fácil de dois assaltantes: à mão armada com uma flautinha doce eles roubaram a minha atenção. Eram dois dançarinos de um estilo ainda inominável que frequentemente se apresentam nos comboios da linha vermelha. Geralmente, consigo livrar-me deles, mas desta vez não deu.
Eu estava sentado, lendo uma tradução capenga de um título conhecido do George Orwell. O trem para, as portas abrem-se para a multidão. “Pessoal, primeiramente aquele bom dia abençoado por Deus! Nós não queremos atrapalhar ninguém; esta, pessoal, não é a nossa intenção, okay? Queremos apenas mostrar um pouco do nosso trabalho, da nossa arte. Não é fácil pra nós, mas com fé em Deus…”. O rapaz que apresentava a dupla devia ser membro da mesma confraria dos artistas do metrô, porque, mutatis mutandis, o seu discurso era o mesmo de todos os outros que se apresentavam lá, inclusive dos pedintes.
De nada adiantou fingir concentração na leitura. Aproximaram-se de mim improvisando uma rima boboca mas divertida, era sobre um sujeito que lia no metrô; alguém com “pinta de inteligente, estudioso” e qualquer outro sinônimo de intelectual. Tudo aquilo era descabido, eu poderia estar a ler um livro de culinária, uma revista de fofoca ou a autobiografia da mulher sapiens — aquela que se gaba de “puxar a brasa para a minha sardinha”. Mas, não. Talvez eles tenham reconhecido o livro pela capa… o grande irmão, o novidioma, Winston Smith… o sistema… Não sei. Estava precavido: ofereci as moedas antes do fim da apresentação. Só me chateio de não conseguir lembrar da rima.
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