Apertem os cintos, não vou repetir o discurso oficial da inculta e repetitiva nova direita nacional. Vamos falar de cinema mesmo. O filme de Walter Salles levou o Oscar, mas penso que não o mereceu. A razão de meu juízo é a superioridade infinita do concorrente polaco-sueco-dinamarquês A garota da agulha.
Enorme polêmica envolveu o longa Ainda estou aqui em virtude da reação estapafúrdia de lideranças políticas e influenciadores contra o filme. Por birra e discordância ideológica, muitos decidiram que era preciso desqualificá-lo, às expensas de suas eventuais qualidades. Por outro lado, outros decidiram que era obrigatório louvá-lo por bairrismo e nacionalismo vulgar: simplesmente porque uma produção brasileira estava no Globo de Ouro e no Oscar. Não sei qual atitude é mais tola. Ambas são equívocas.
A garota da agulha é uma obra de arte, em termos de cinema. Inspirada em fatos reais, a trama se passa durante os estertores da primeira guerra mundial. Não por acaso, o enquadramento estético atualiza o expressionismo alemão, estilo marcante da época em que a história se ambienta e adequadíssimo para dar vazão à crueldade inenarrável da trama em si. Primeiro ponto do filme: unidade entre forma e conteúdo, estilo artístico e teor da experiência que se relata.

Imaginem uma moça incerta sobre o que aconteceu ao seu marido na guerra, às voltas com dívidas para manter o apartamento do casal, sujeita a um trabalho de ganhos modestos numa fábrica de tecelagem, sem rendimentos do marido soldado, nem documentos sobre sua eventual morte para ter direito à pensão destinada às viúvas. Pede ajuda ao dono da fábrica. Ele tira proveito da vulnerabilidade da moça, que cede à sedução por fraqueza e esperança de sair da penúria experimentada. Morando num porão e vestindo andrajos, aposta na aventura. Grávida, vê-se em apuros. Nesse momento o marido retorna. Literalmente desfigurado pela guerra, ocultando o rosto atrás de uma máscara. A esposa o manda embora, entusiasmada com seu novo amor. O dono da fábrica promete se casar com ela e a leva até sua casa. Ali o sonho breve desaba, diante da recusa da família, decisão endossada pelo amante. A moça termina sem o marido, sem o amante, sem o emprego na fábrica. Com uma agulha de crochê, vai até uma casa de banhos na intenção de ferir o útero e provocar um aborto. A cena é difícil. Após a tentativa, é abordada por uma senhora que a socorre e convence a levar a gravidez a termo, procurando-a quando o bebê nascesse, prometendo tomar providências, em troca de uma taxa, para encaminhá-lo a uma família rica disposta a adotá-lo. A moça sobrevive às custas de trabalhos pesados, reencontra o marido deformado trabalhando num circo, leva-o novamente para casa, dá à luz num depósito de beterrabas, durante o expediente. O marido deseja o bebê. Ela quer se livrar da criança. “Isso é uma dádiva, não algo que se dê”. Enquanto ele sobe ao apartamento com um berço nas mãos, ela escapa pelo beco em busca da senhora da casa de banhos para entregar a filha recém-nascida. É ali que o drama escala.

Quantas tragédias cruzadas você leu até agora? O soldado que perde a dignidade por ter servido seu povo na guerra, destinado a terminar seus dias como aberração e número de circo; uma mulher do pós-guerra vivendo como homem, e tratada como objeto descartável, trabalhando pesado com um ventre de 9 meses a pesar-lhe no corpo e na alma; uma senhora cujo trabalho é livrar mulheres sem rumo de bebês indesejados, em troca de dinheiro. Uma traficante de recém-nascidos. Se já parece bem sombrio, prepare-se, pois a história só vai endurecer.
A “garota da agulha”, como diz a senhora ao segurar sua recém-nascida, acaba pedindo para aleitar bebês de passagem em troca de um lugar onde ficar. Não teve coragem de voltar para casa, após ter dado a criança. Mas sua menina não estava mais lá. Passa a cuidar da filha da senhora (a criança de 7 anos chamada Erena) e trabalhar na fachada do comércio real (o tráfico de bebês), uma loja de doces e especiarias numa rua alta e estreita, escorregadia e barrenta. Cada mulher que chega à porta de vidro segurando um recém-nascido indesejado repete aquele calvário dos tempos modernos, saindo aos prantos sem olhar para trás. Algo estranho, perturbador e gélido envolve a intermediadora de bebês. O frio a envolve. Ela se droga com éter para suportar a existência.

Um dia a moça da agulha se apega a um bebê de passagem pela casa. A ponto de tratá-lo como filho. Passa a rejeitar a filha da senhora. A menina se rebela. Em consequência, a senhora diz que chegou a hora de levá-lo embora. A moça, inconformada em ver o bebê partir, segue-a, descobrindo enfim o destino real dos bebês recebidos em troca de dinheiro pela misteriosa senhora. Desse momento em diante, prosseguir o filme só é tolerável em virtude da maestria formal. A classificação é compreensível: uma pessoa com menos de 16 anos não tem meios de digerir a história.
Filmado em branco e preto, a luminosidade é explorada ao máximo. Na ausência de coloração, todas as contundentes emoções que afloram dos personagens é expressa pela luz, que emoldura placidamente cada uma das cenas, envoltas em variações de claro e escuro. A fotografia é evidentemente impecável, só não eclipsando as atuações, todas alternando contenção máxima e expressividade efusiva. A história real da mulher que recebia os bebês e os fazia desaparecer, acabando presa, foi notícia nos jornais da época. A forma como ela tenta fazer da garota da agulha sua cúmplice, e a atitude extrema que essa toma ao recusar o papel, é menos realista que expressiva. Todo o filme, afinal, exprime a dor lancinante típica do dilema moral de mães que rejeitam a vida que nelas aflora, seus bebês, chegando ao extremo de permitir que eles sejam assassinados.

É um filme sobre a desnaturalização da mulher; sobre o caráter grotesco da crueldade; sobre a aversão intrinsecamente humana às aberrações em todas as suas formas. Mas a chave do drama está na cumplicidade entre os perversos e os hipócritas, círculo vicioso que só conseguimos superar por meio do arrependimento de tê-lo, também nós, plenamente vivido. É exatamente isso que a protagonista carrega no rosto desde a primeira cena, essa dualidade entre horror e redenção que vivenciamos das formas mais brutais; a angústia vital que só conseguimos identificar plenamente na aliviante cena final do filme.
Perto dessa perturbadora joia do cinema europeu, o drama em tons de novela global de excelência técnica filmado por Walter Salles, por mais que narre uma história muito triste, acaba parecendo entretenimento de sessão da tarde.
Mas como sabemos, nem toda estatueta se fundamenta nos méritos do cinema em si mesmo. A maior parte das premiações se deve a interesses ligados à indústria do cinema, isto é, à redução da sétima arte a máquina de ampliar fortunas. Se a nova direita estivesse interessada em cultura, teria falado menos do filme de Walter Salles que da obra-prima europeia. Bem no espírito do Óscar, preferiram o palanque, a agenda e a possibilidade de ampliação exponencial de ganhos concretos.
Se você vive menos interessado em engajamento que em encarar os horrores aptos a despertar nossa consciência sobre a verdade da condição humana, vá direto ao melhor filme estrangeiro dos indicados ao Oscar 2025: A garota da agulha.

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Muito obrigado, professora Bruna.
Excelente resenha !