Muito antes de Tocqueville, Franklin e Churchill, a democracia teve um crítico severo e implacável: o historiador grego Políbio (203-120 a.C.)
Não são poucos os que pensam que o descrédito dos ideais democráticos é um fenômeno recente, resultado dos bombardeios constantes tanto de conservadores quanto de “progressistas” (comunistas e assemelhados). Mas a verdade é que a história desses “ideais” é antes de tudo a saga milenar de uma decepção anunciada. Ao longo dos tempos, sobretudo no plano conceitual, a democracia nunca desfrutou de opiniões unânimes e lisonjeiras. E essa depreciação é muito mais antiga do que supõe nossa vã filosofia. Porque Tocqueville, Franklin e Churchill e tantos outros tiveram um antecessor de peso, nem sempre lembrado: o historiador grego Políbio (203-120 a.C.).
Lá no alvorecer da civilização ocidental, Políbio já alertava para o perigo subjacente à então recém-nascida forma de governo: a tal Democracia, que se propunha cuidar dos interesses dos “direitos coletivos dos habitantes”, nas cidades-estado que giravam na órbita da poderosa Atenas. A páginas tantas de sua clássica obra Histórias, ele cunhou o conceito de oclocracia (okhlokratia: literalmente, “governo da turba”) para nomear aquilo que considerava uma variante “mórbida” ou “patológica” do governo popular. Mais especificamente, para Políbio e seus contemporâneos, a oclocracia seria uma das três formas ruins de governo (ao lado da tirania e da oligarquia), em oposição às três formas boas: monarquia, aristocracia e politeia (designação das cidades-estado que tinham uma “assembleia de cidadãos” como peça-chave de seu processo político).
Mas… onde entra a Democracia, em tudo isso?
Pois é. Com Políbio, ou melhor, a partir dele, ganhamos a chance de ver a
Democracia em sua devida dimensão: como uma proposta genérica, uma medida instável de referência – e não uma forma ideal (ou mesmo exequível) de governo. Ao longo dos séculos, centenas de governantes fizeram coisas horríveis em nome dela. E não bastam prerrogativas legais para que a oclocracia não se instale. Mas vamos por partes.
O neologismo de Políbio parece ter caído no ostracismo, mas pelo menos sua
advertência abriu espaço para que a Musa democrática deixasse de ser levada a sério. O resultado acabou sendo bastante contraditório: se na arena política ela foi quase sempre defendida com palavras incandescentes e armas afiadas, as reflexões e teorizações a seu respeito constituem uma mistura de exagero e comicidade. Exemplo notório é o anedótico Churchill, para quem a democracia é “a pior forma de governo, com exceção de todas as outras experimentadas de tempos em tempos pelos homens”.
Costumeiramente moderados, os ingleses no entanto sempre esbanjaram acidez e veneno no “elogio” da Democracia. Lorde Byron, por exemplo, expoente do Romantismo, mostrou-se ao mesmo tempo realista e imaginoso: “O Diabo foi o primeiro democrata”. E, ainda dentro das fronteiras britânicas, o pensador liberal Thomas Macaulay expressou desconfiança bem semelhante: “Estou convencido de que, mais cedo ou mais tarde, as instituições puramente democráticas vão destruir a liberdade ou a civilização – ou quem sabe as duas”.
Do lado de cá do Atlântico, a Democracia não se saiu melhor. O estadista americano Benjamin Franklin, paladino das liberdades, nem por isso economizou veneno e acidez: “Democracia são dois lobos e uma ovelha decidindo sobre o que comer no jantar”. E Thomas Jefferson, principal autor da declaração de Independência dos Estados Unidos, acrescentaria que a democracia “não é nada mais do que a ditadura da multidão, onde 51% das pessoas podem tirar os direitos dos outros 49%”. O argentino Jorge Luís Borges, conservador assumido, é igualmente direto: “A democracia é um erro estatístico, porque nela a maioria decide, e a maioria é composta de imbecis”.
Além dessa algazarra de citações involuntariamente engraçadas, também há lugar para o humor profissional, com dois mestres no assunto. De um lado do oceano, o britânico Bernard Shaw: “A democracia é apenas a substituição de alguns corruptos por uma porção de incompetentes”. Do outro, o irreverente Millôr Fernandes: “O problema da democracia é que ela acaba sempre na mão dos democratas”.
Mas talvez ninguém tenha chegado tão perto da lucidez de Políbio quanto Alex de Tocqueville – o mais americano entre os franceses. Autor não de uma ou duas frases, mas de pelo menos dois livros inteiros sobre o assunto – em especial, Da Democracia na América e O Antigo Regime e a Revolução –, Tocqueville mostrou que os ideais democráticos não eram (nunca foram) solução, e sim uma parte do problema. Para ele, a “democracia na América” só daria certo se estivesse assentada numa síntese indissolúvel de liberdade exterior e autocontrole moral e religioso.
(Enquanto isso, o burocratismo dos progressistas e libertários inverte o paradigma, fomentando a irresponsabilidade pueril que suscita a proliferação de bedéis, fiscais e sargentos de polícia – em suma, o proverbial “guarda da esquina”).
O americano tradicional sabia que era possível haver governo limitado e liberdade para todos, desde que cada um fosse capaz de: governar a si mesmo, ler a Bíblia e abdicar de “cobiçar a mulher e os bens do próximo”. Na contramão desses nobres princípios, o estatismo que hoje vai tomando conta do mundo prefere incentivar a cobiça e a inveja generalizadas, adornando de “motivos” sofisticados (na verdade, cínicos pretextos) a recusa do autocontrole e a proclamação arrogante do primado do prazer sobre o dever.
No fim das contas, guardadas as diferenças pontuais de cada época, autores como Políbio e Tocqueville demonstraram que uma sociedade baseada na liberdade individual não cabe plenamente na palavra democracia. Por isso seu futuro não depende do utópico e insaciável “aperfeiçoamento das instituições” – e sim da religião sincera, da ética aplicada à vida e aos negócios, e também da boa formação intelectual da elite. Em suma, todas aquelas coisas que costumam ser desprezadas pelos loucos ou revolucionários que depositem na política e no Estado todas as esperanças.
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“O Diabo foi o primeiro democrata”.
— Lord Byron (1788-1824),
poeta inglês.
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